Lutadoras e Lutadores em Buenos Aires dizem “Fora OMC!”
Não apenas no Brasil e na Argentina, com as reformas trabalhista e previdenciária, mas em vários locais do mundo, o capital tem lançado uma terrível ofensiva aos direitos da classe trabalhadora e dos povos. O desmonte de direitos sociais e serviços públicos é aliado a uma forte corrida predatória para remover quaisquer entraves legais à devastação ambiental produzida pelo agronegócio, pela mineração, pela indústria de combustíveis fósseis e outros. Crescem a militarização, as políticas de repressão e lamentavelmente ganham espaço político alternativas racistas, xenófobas, LGBTfóbicas e misóginas. O aprofundamento das políticas neoliberais têm conduzido a uma crise profunda que combina o agravamento das mudanças climáticas e a mercantilização da água com o ódio a tudo que não estiver na lógica da dominação capitalista, da colonização e do patriarcado.
Mas face a essa ofensiva há resistência e construção de alternativas! Entre 11 e 13 de dezembro, em Buenos Aires, ocorreu um evento paralelo à reunião da Organização Mundial do Comércio (a OMC): a Cúpula dos Povos “Fora OMC, Construindo Soberania”. Foram dias de intensos debates, distribuídos entre diversos fóruns: de povos originais, de mulheres, de bens comuns e justiça climática, de saúde, educação etc. Contra a lógica de “crescimento econômico infinito” que alimenta a desigualdade, a fome, a miséria, o aquecimento global e a destruição de biodiversidade, falou-se de ecossocialismo, ecofeminismo, bem-viver, da potência do pensamento dos povos originários, comunidades tradicionais, trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade e da força da luta de todos os oprimidos.
O evento contou com uma marcha em protesto contra a reunião da OMC que reuniu milhares de pessoas e culminou com uma Assembleia que aprovou uma declaração final chamando os povos à luta contra a ofensiva do capital cujo texto completo é apresentado a seguir:
DECLARAÇÃO FINAL DA CÚPULA DOs POVOs “FORA OMC, CONSTRUINDO SOBERANIA”
A Cúpula dos Povos “Fora OMC, construindo soberania” reuniu-se nos dias 11, 12 e 13 de dezembro em Buenos Aires, Argentina, antes da XI Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio naquela cidade.
As organizações sociais, sindicatos, camponesas, de povos indígenas, de mulheres, territoriais, antiextrativistas[1], de direitos humanos, entre outras em todo o planeta que compõem a Cúpula dos Povos, reafirmam nossa rejeição às políticas de “livre comércio”da Organização Mundial do Comércio (OMC). A OMC reflete os interesses do capital transnacional mais concentrado, que visa eliminar barreiras à livre circulação de mercadorias, serviços e capital. É uma organização que só leva em consideração as necessidades do capital, ajudando a reproduzir as relações capitalistas de exploração e saque. Essas políticas afetam os direitos historicamente conquistados pela luta dos povos do mundo.
As transnacionais atuam sob o guarda-chuva de uma Arquitetura da Impunidade, que inclui o Sistema de Dívida, os Acordos de Livre Comércio (ALC) e a proteção de investimentos e organizações multilaterais como a OMC. Estes produzem uma globalização baseada no afã de lucro. Neste contexto, a dívida pública tornou-se uma ferramenta privilegiada de expansão capitalista da concentração, desigualdade e opressão. Subordina o modelo de produção e consumo à necessidade de pagar juros cada vez maiores. Nos comprometemos a trabalhar para revelar as repercussões que a dívida implica nas múltiplas resistências, denunciando seu caráter ilegítimo, demonstrando quem realmente deve a quem e construindo um horizonte de transformação e esperança, assumindo-se os povos como credores de dívidas não só econômicas, mas também sociais, históricas, ecológicas, democráticas, de gênero, entre outras. Precisamos continuar construindo a partir as lutas dos povos para avançar nesse processo, incluindo ações como auditorias integrais e cidadãs da Dívida, tribunais éticos e consultas populares, dentre outras estratégias.
Diante do poder corporativo, que protagoniza expulsões pelas transnacionais nos territórios, nos comprometemos a globalizar as lutas e a seguir fortalecendo laços e articulações. Devemos continuar lutando para alcançar um tratado internacional que obrigue as corporações transnacionais ao respeito pelos direitos humanos. Devemos disputar o espaço legislativo e judicial, denunciando como as leis são violadas, distorcidas, mal interpretadas e adaptadas ao interesse das transnacionais. Devemos manter a autonomia dos movimentos sociais em relação aos governos, sinalizando nossa solidariedade para os Povos, comunidades e organizações perseguidos e reprimidos.
A liberalização dos fluxos comerciais e financeiros afeta desigualmente a vida diária das mulheres e aprofunda as desigualdades e a pobreza, expandindo o desemprego e a informalidade e financeirizando compulsivamente as nossas vidas, aprofundando todas as formas de violência patriarcal. As mulheres, lésbicas, trans, travestis, bissexuais, gays, não-binárias, afrodescendentes, migrantes, deslocadas/atingidas e refugiadas, indígenas, negras, camponesas e trabalhadoras autogestionárias reunidas no Fórum e na grande Assembleia Feminista contra o livre comércio afirmam a luta antipatriarcal, antirracista e anticapitalista.
É por isso que expressamos a nossa rejeição da Declaração da OMC sobre Comércio Livre e Empoderamento Econômico das Mulheres, porque se baseia em afirmações falsas e numa visão reducionista do empoderamento econômico das mulheres. A evidência fornecida pela Economia Feminista mostra que os processos de liberalização do comércio têm prejudicado a maioria das mulheres. As regras comerciais promovidas pela OMC ameaçam os meios de subsistência das mulheres urbanas, camponesas, indígenas, afro e quilombolas, favorecem a desapropriação de seus territórios, restringem o acesso das mulheres às políticas públicas de acesso à água, saúde, educação e um longo etecetera, limitam o acesso a bens básicos essenciais, como medicamentos, e promovem formas produtivas baseadas na cruzada até o fim de todos os direitos trabalhistas, salariais e de proteção social, o que nos afeta especialmente. Rejeitamos o uso político de nossas lutas e demandas para salvar uma cúpula fracassada. Não em nosso nome!
Os acordos da OMC impedem o acesso aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes e suas famílias. A prioridade exclusiva da valorização do capital incentiva a exploração do trabalho dos e das migrantes. A busca por mais investimentos estrangeiros leva à assinatura de acordos comerciais que impulsionam a globalização e os fluxos de capital, enquanto se criminaliza e se questiona a mobilidade das pessoas pelo mundo.
O reconhecimento da migração como um direito humano (nacional, regional e global) abre espaço para debater a liberdade de trânsito entre os territórios e a construção de uma cidadania universal. Para que este direito venha a ser cumprido, é importante promover a participação política e economias sustentáveis, independentes e solidárias que levem ao desenvolvimento local e regional das comunidades de migrantes.
A OMC e os TLCs[2] avançam na conversão de nossos alimentos em mercadoria. Isso tem provocado a maior crise alimentar que a humanidade já sofreu. Atualmente, mais de 50% da população mundial sofre de fome, desnutrição ou é parte da epidemia de obesidade e sobrepeso que enfrentamos. Ao mesmo tempo, essas políticas apoiam a destruição, a acumulação e a contaminação de nossos territórios e expulsam as comunidades indígenas e camponesas, colocando em risco sua continuidade cultural. O agronegócio e a extração indiscriminada de combustíveis fósseis, são os principais responsáveis pelas duas principais crises socioambientais que hoje vivemos: a crise climática e a extinção maciça da biodiversidade.
Diante dessa situação, defendemos a Soberania Alimentar que acompanha a produção camponesa agroecológica, em que as sementes são entendidas como patrimônio dos povos a serviço da humanidade. Propomos reformas agrárias integrais e populares, mercados locais, tendo fundamentalmente a voz das camponesas e camponeses como protagonistas dessas políticas.
A OMC e os TLC escondem-se atrás da máscara de “alternativas verdes”, mas no final apenas dão suporte ao modelo extrativo, com ênfase na mineração e extração de combustíveis fósseis. Nessa lógica, a água é considerada uma mercadoria e não um Direito Humano. Sabemos que não há alternativa para a vida no planeta dentro do capitalismo, que não só nos explora, mas também contamina e mata. Para superar essas contradições, defendemos as alternativas populares, como o “buen vivir” proposto por diferentes povos indígenas; o eco-feminismo; o ecossocialismo; e práticas concretas como a soberania energética, a agroecologia e a permacultura, que podem ser transformadas em alternativas sistêmicas ao capitalismo se não forem aplicadas individualmente, mas como política geral.
Essas experiências enquadradas na economia popular, social e autogestionária são manifestações da sobrevivência dos povos, mas ao mesmo tempo são uma resistência aos desígnios da lógica capitalista. Usando os meios de produção disponíveis para trabalhadoras e trabalhadores e ao mesmo tempo reivindicando nossos direitos é que podemos pensar em construir espaços de poder que desafiem o modelo hegemônico. Nesta perspectiva, entendemos o papel das experiências produtivas sem patrões, à margem do sistema e desde uma profunda identificação de classe para construir alternativas. Depende de nós se continuarmos em uma economia capitalista de pobres ou se avançamos na construção de um projeto alternativo. Não se trata apenas de lutar pelo poder para conseguir a sociedade que queremos, mas também de construir os caminhos que nos aproximam dela. Reivindicando do Estado o que é nosso, ao mesmo tempo em que consolidamos um poder alternativo baseado numa economia dos e para os Povos.
O livre comércio atenta contra o direito à saúde e precariza os sistemas de saúde pública, causando sérias consequências para a vida das pessoas. A saúde e os medicamentos não devem ser regulados pela OMC, uma vez que a saúde é um direito humano, não um negócio; e os remédios são um bem social e não uma mercadoria. Os acordos comerciais da OMC nunca responderão às necessidades de saúde pública. A ênfase nos interesses do mercado em detrimento da saúde pública favorece o capital transnacional, que por meio de preços exorbitantes e injustificados impostos pelas grandes empresas farmacêuticas, trazem doenças, desespero e morte para as pessoas.
Por isso, a soberania sanitária implica manter modelos de saúde pública que garantam a primazia do interesse público e da justiça social. A este respeito, exigimos a suspensão do Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) da OMC para as tecnologias da saúde; rejeitamos qualquer acordo comercial que afete negativamente o acesso a medicamentos, como o Tratado entre a União Europeia e o Mercosul; discutimos novos modelos de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) que promovam tecnologias gratuitas e acessíveis para todos os povos, independente em que país ou região vivam e cujos resultados (dados, processos e produtos) sejam considerados bens comuns.
O“livre comércio”e a OMC promovem um conjunto de iniciativas que tentam transformar a educação em um bem à venda, permeado por diferentes lógicas mercantis e privatizantes que apresentam maior ou menor grau de visibilidade. Assim, os direitos sociais e educacionais são ameaçados pela lógica do mercado, pelos direitos de propriedade e capital e, desta forma, a educação se torna um serviço comercializável.
Por outro lado, a soberania educacional constitui um direito que temos como povos, para a autodeterminação de como nos educar, com quais valores e de que maneira. Em meio à crise civilizacional que atravessamos, propomos formatos educacionais alternativos, formas mais horizontais de participação, conteúdos e valores que expressam alternativas políticas e sociais.
As políticas de livre comércio não seriam possíveis sem um forte aparato de segurança e de repressão que acompanha a implementação de políticas de austeridade. O aumento das bases militares a nível global reflete essa situação, bem como o uso da força policial no interior dos Estados nacionais. A militarização implica o genocídio e o silenciamento de povos inteiros em defesa dos interesses do grande capital. Exigimos a retirada das tropas do Haiti. Exigimos a libertação e a descolonização da Palestina, o fim do regime do Apartheid, aderimos ao Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções e expressamos o mais forte repúdio à decisão unilateral dos Estados Unidos de reconhecer Jerusalém como capital do Estado sionista de Israel.
A alternativa ao militarismo e à guerra perpétua que é o imperialismo em todas as suas formas, especialmente em sua forma sionista, é a resistência numa unidade crescente dos povos e dos Estados. O imperialismo é uma das principais causas das guerras mundiais, da corrida armamentista, do genocídio, da tortura, da manipulação em massa, do terrorismo psicológico, dos assassinatos seletivos e dos massacres da população civil, da formação e atuação de forças terroristas paramilitares como o ISIS.
Até 2018, a Cúpula do Povo convida todos os povos do mundo a se mobilizarem contra a Cúpula Presidencial do G-20 que acontecerá em Buenos Aires em 2018. O G-20, como a OMC e todos os TLCs, só reflete a sede de lucro das corporações e não as necessidades dos povos. Não é por acaso que tanto a OMC como o G20 são realizados na Argentina: este país quer mostrar-se como um líder regional na liberalização do comércio. Por esta razão, a mobilização de nossos povos é crucial. Somos nós e nós que devemos elevar a nossa voz e fazer com que nossas propostas alternativas para a crise climática e civilizacional sejam ouvidas.
Da mesma forma, chamamos a construção de uma greve internacional de mulheres para o próximo 8 de março, a partir de uma ampla visão de trabalho que leve em consideração nossas realidades heterogêneas. Não haveria capitalismo sem o trabalho de cuidados não remunerados para as mulheres.
As organizações e movimentos da Cúpula dos Povos Fora OMC convocamos a continuidade das lutas da resistência à atual ofensiva do capital internacional contra os direitos dos povos, na construção coletiva da edição do Fórum Social Mundial 2018, em Salvador, Bahia, Brasil, de 13 a 17 de março. Resistir é criar, resistir é transformar!
A resistência global foi vista e ouvida em Buenos Aires. Mais uma vez, onde quer que ocorram os grandes fóruns globais, a resistência dos povos estará se levantará e a luta por nossos direitos os aguardará.
Fora OMC! Fora G-20!
ASSEMBLÉIA DOS POVOS / CÚPULA DOS POVOS “FORA OMC, CONSTRUINDO SOBERANIA”
13 DE DEZEMBRO DE 2017
[1] O termo “extrativismo” aqui obviamente se refere à mineração, extração de combustíveis fósseis e outras atividades capitalistas de grande impacto socioambiental e não às atividades (também referidas como “extrativistas”) de comunidades tradicionais.
[2] Tratados de Livre Comércio
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