Dois elogios e um desafio ao Ecossocialismo
Carlos Bittencourt – militante do Subverta/RJ
A maioria dos marxistas dirige um olhar jocoso para as ideias ecossocialistas, parecem que veem ali coisas como as ideias de um Owen, um Fourier, um socialismo utópico frente ao seu socialismo científico. Erram, no entanto. O ecossocialismo é a fase superior do materialismo histórico.
Não se trata da prosaica justaposição da ecologia com o socialismo. É uma síntese superior. É, ao mesmo tempo, perspectiva epistemológica e científica, é base ética e política, é estratégia de (des)envolvimento e é utopia.
Uma das características mais admiráveis no Karl Marx era o acompanhamento atento e crítico das principais linhas de pensamento das mais diversas áreas do conhecimento, da química à filosofia, de Justus Von Liebig, passando por Darwin, Ricardo, Proudhon, Adam Smith e Hegel. Isso se torna uma característica imanente nas reflexões do Marx, um imbricamento dialético das áreas do saber e mesmo a defesa explícita da superação das fronteiras entre as áreas de conhecimento. A epistemologia básica do ecossocialismo se sustenta justamente nessa amálgama que veio se consolidando em meio ao emaranhamento das ciências humanas com as ciências exatas e da natureza. O conceito de Antropoceno é um símbolo disso, é filosófico, geológico, societal, climático… Não há internacionalismo possível sem a incorporação das lições que vêm sendo tiradas das Ciências do Sistema Terra. Ausculta também os saberes dos povos originários e tradicionais e reconhece neles uma sabedoria que aponta para o futuro e não apenas continuidade do passado. Trabalhadores e Povos do Planeta, uni-vos, é ainda mais urgente.
O ecossocialismo é uma síntese ético-política superior. Dobra a aposta do humanismo e inclui todas as formas de vida como dignas de suas vidas. Chama os povos ao convívio e a harmonia entre si e com a natureza. Não é mesmo admirável e miraculoso o fato desse nosso planeta, no meio da solidão infinita do universo tenha criado um sistema tão rico e complexo de vidas interdependentes? Por isso, a diversidade, a pluralidade, a democratização permanente, a liberdade, a racionalidade ecológica, a descentralização, a educação libertadora, a saúde ambiental, o pacifismo, o antipunitivismo, o anticolonialismo, o plurinacionalismo, a construção de novos sistemas e hábitos alimentares, a simplicidade, o combate ao ostentatório, ao predatório, ao patriarcado, ao racismo, à homofobia, à desigualdade, entre outros, são preceitos ético-políticos fundamentais. A estratégia política ecossocialista aspira expressar forma e conteúdo condizentes com esses princípios, por isso é anti-faccionalista, é desapegada das posições de poder, é coletiva, incorpora a dimensão do afeto e a profundidade da palavra companheira. Assim, dito no geral e no feminino.
Se os socialistas mais educados na tese do produtivismo e do industrialismo seguiram com a leitura até aqui, podem estar dizendo: “isso não passa de um manifesto de intenções”, “apologia”, “falta realismo econômico”, “afinal, como vamos gerar riqueza para dar dignidade a bilhões de pessoas?” De fato, nós os ecossocialistas devemos reconhecer que nesse aspecto ainda avançamos pouco, bem pouco. E parece que as tarefas dos ecossocialistas das periferias do capitalismo são ainda mais difíceis e complexas. Mas há pelo menos um motivo forte que nos anima para essa práxis criativa. Nas atuais circunstâncias, qual a melhor estratégia de transição para fora do capitalismo? Não me parece que apenas os ecossocialistas deveriam estar agoniados por não terem uma resposta acabada para essa pergunta.
O neoliberalismo e o desenvolvimento técnico monopolizado literalmente “chutaram a escada” de hipóteses como a “substituição das importações”, de uma industrialização endógena diversificada, então, está muito evidente que mesmo para os setores mais prolíficos do marxismo latino-americano, como a teoria marxista da dependência, que muito já fizeram para explicar nossa situação e apontar caminhos, hoje, devido a profunda mudança situacional, ainda têm muito o que a apreender e produzir. Assim como a desigualdade entre pessoas ricas e pobres explodiu como resultado do período neoliberal e social-liberal, o distanciamento entre os países centrais e os demais, mesmo os melhor posicionados como o Brasil aumentou tanto ou mais. Nossa posição se deteriorou dentro das hierarquias de poder, produção, troca e consumo de matéria, energia e trabalho morto no mundo contemporâneo. O desenvolvimento pleno da sociedade brasileira ao nível das nações capitalistas desenvolvidas é uma utopia/distopia mais distante do que a proposta da grande transição apontada pelo ecossocialismo. Nossas veias seguem abertas como já nos alertou Galeano e jorram como nunca!
Os burgueses tratam a nossa mineração, as monoculturas, termelétricas, exploração petrolífera como o que temos de melhor e é justamente o contrário. São as chagas abertas e vivas de 500 anos de exploração e colonização. O que se chama “estratégia de desenvolvimento”, para o ecossocialismo se chama grande transição. Ela passa por colocar no centro da transformação social o fim da propriedade privada capitalista. No Brasil, a chave para iniciar uma transição para quebrar a propriedade privada capitalista passa justamente em enfrentar os latifundiários (que hoje são também instituições financeiras, fundos de pensão, etc.) fazendo Reforma Agrária popular e agroecológica e freando a quimera urbano-industrial. Demarcando e titulando todas as terras indígenas e territórios quilombolas e tradicionais. Subordinando toda a extração de bens minerais do subsolo brasileiro ao controle público que pense ritmos e taxas de extração segundo uma racionalidade ecológica e democrática.
Esses são passos iniciais, não há programa pronto, mas o ecossocialismo parece ser dotado da radicalidade necessária para se repensar o caminho que a maioria da humanidade quer trilhar nos próximos anos. Traz uma crítica da técnica capitalista que a maioria das experiências socialistas tentou imitar e foram uma das causas fundamentais de suas degenerações seja as que soçobraram seja as que sobreviveram.
Reconhecemos, então, que não temos as respostas acabadas. Mas num cenário em que ninguém as tem, nos vemos numa posição especial para propor um novo regime social, técnico-econômico, cultural e ético-político. Não temos todo o tempo do mundo, pois temos o mundo do nosso tempo. Há perigo na esquina e a urgência e a ousadia não são precipitação ou euforia, são partes estruturantes da salvação da humanidade e do planeta. O ecossocialismo é o socialismo do século XXI por sua dimensão de novidade, por seu vínculo com longínquas e plurais tradições, por sua urgência e pelo seu potencial utópico altamente inspirador.
Gostei do texto, mas achei a babação de ovo em cima de Marx, no início, desnecessária. Me lembrei de outros textos e vídeos em q, qndo se menciona Marx, deixa-se claro uma distância em relação a ele…uma entrevista com Paul Singer (em q ele fala da posição crítica de Rosa Luxemburgo em relação ao dito cujo); uma entrevista com Castoriadis; outra com Silvia Rivera Cusicanqui; um texto de Silvia Federici; outro sobre Maurício Tragtenberg…Nesse, pelo contrário, a menção parece querer marcar uma filiação. No entanto, todo o conteúdo do texto interessaria tb a pessoas q, por uma ou outra razão, tem verdadeira aversão ao filósofo (ou à leitura q se faz normalmente dele); pessoas q se identificam com o ecosocialismo, desde uma perspectiva anarquista, ou socialista libertária, e/ou com a movimentação zapatista a q remete a imagem q ilustra esse texto, e q certamente gostariam de notar maior ‘autonomia’ por parte de quem escreve. Espero q ñ se importe, Carlos, ñ te conheço…entenda como uma dica, pra talvez tornar a aproximação a q se refere Michael Löwy e Olivier Besancenot, em Afinidades Revolucionárias, mais possível (ainda q eles próprios talvez, de modo semelhante, se apeguem mais ao autor do q seria recomendável pra q essa aproximação fosse possível). David Graeber? Pouco “eco”, talvez…Alberto Acosta? Julieta Paredes? Ñ sei…a variação, de qquer modo, acho q seria já mais interessante do q essa insistência (mtas vezes acrítica, e certamente cansativa) no nome de Marx…Acho q vale investir nessa ponte…;) Abraço!
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Pedir para um texto de uma organização marxista ser menos marxista só pode ser piada.
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Pois é!
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A Revolução nunca será uma revolução como a que se espera. As condições materiais é que permitirão avançar as potencialidades e que demarcarão os limites. Mas isso não significa que as revoluções devam sempre seguir-se no improviso e na reação. É necessário ter objetivos a se alcançar – daí a importância da utopia, mesmo no socialismo científico. São as utopias que nos movem. Sem elas, só resta o cinismo.
Ouvi falar do ecossocialismo apenas recentemente e não tenho leitura alguma sobre o tema, mas a apresentação aqui posta me parece rica o suficiente para construir pontes com todos os que entendem ser necessário superar o capitalismo. Esse modo de produção nos encaminha para barbárie (ou para a extinção).
Por isso Marx me parece uma referência incontornável. Sua caracterização da forma-mercadoria e de toda a corrente de valor envolvida em sua produção definem a alma do modo de produção capitalista.
Para superar o capitalismo precisamos superar a forma-mercadoria. Isso não se dá convencendo as pessoas a consumir desta ou daquela maneira, nem organizando a sociedade política deste ou daquele jeito. É necessário redesenhar o modo como produzimos. Grandes latifúndios que exportam soja para virar ração só produzem miséria (concentram a renda, desgastam a terra). Cavar a terra e fazer barragens para extrair ferro só produz destruição.
Precisamos de uma transição para modos de relação com a natureza e de produção de nossas condições materiais de vida que sejam sustentáveis.
Obrigado por compartilhar seu texto. Para mim, ele fez todo o sentido.
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Acho que deve pensar em investir na terra como território – adicionando o campo simbólico, espiritual. A reforma agrária não permite o povo fixar na terra também por questões culturais. Entretanto o povo indígena, os extrativistas e os povos das águas nos ensinam que o valor da terra como propriedade diz pouco. Os originais, inclusive, a pensam como mãe, não como bem. Daí que estás formas superiores de relação com a terra precisam de muito empoderamento. No mais salve!
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