O Tempo linear: onde esquerdistas e reformistas se encontram
Por Carlos Bittencourt
Um dos fundamentos mais importantes de toda estratégia política é a concepção de História. Estratégia é pretensão, é propósito. Atuação intencional de um grupo ou classe social para transformar uma determinada situação em outra mais conformada aos seus objetivos. Tentativa de determinar a forma do desenvolvimento do espaço no tempo. Sem reflexão sobre qual é a nossa abordagem sobre a História, poderemos ter a melhor caracterização de conjuntura e o mais bem acabado objetivo estratégico final/horizonte utópico e mesmo assim não saberemos transitar de um ponto ao outro, ou melhor dizendo, de uma situação à outra.
Na maioria das vezes a concepção sobre a História se manifesta de forma absolutamente inconsciente e, em muitos casos, incorporando a mais tradicional forma dominante do senso comum que é conceber o desdobrar da história como uma sucessão espaço-temporal cumulativa e/ou cíclica, derivada da lógica predominante na maioria dos calendários. Essa forma de senso comum dialoga diretamente com a noção ideológica de Progresso e toda uma série de consequências que ela tem sobre uma visão de história eminentemente evolutiva. Ter consciência dessas dificuldades teóricas é imprescindível para a construção de uma estratégia política com viabilidade fática.
É preciso “escovar a história à contrapelo”.¹ Assim, veremos o quanto o “atraso” pode ser realizado como modernização. Como o que o mundo ocidental julgou como o mais “bárbaro” pode ser parte normalizada do cotidiano e como o massacre das classes dominantes sobre as demais pode perdurar e repetir-se uma e outra vez. Portanto, construir a estratégia emancipatória do nosso tempo apresenta-se como tarefa irrealizada. Muitas estratégias foram longe nesse sentido, mas a maioria ou foi derrotada ou traída. É nesse terreno que elaboraremos e implementaremos essa nova estratégia, tentando superar as anteriores, mas emergindo do seio delas.
O que Daniel Bensaïd chama de “política profana” é a substância da arte estratégica. Ela que conduz os grupos e classes sociais a conquistarem os deslocamentos da realidade efetiva em seu favor. O horizonte utópico por si só, não nos conduz a lugar algum, apenas pode iluminar nosso caminho e sugerir direções. Mas a ação efetiva emerge das condições reais, profanas (no sentido de que não tem nada de sagrado) e sem garantias.²
Isso não é trivial. Uma ação estratégica efetiva faz história. Mas a forma que a História se faz não é afeita a planos, flui também por contingências. Os planos para o fazer histórico, então, devem necessariamente emergir de dentro das condições históricas efetivas. Ao mesmo tempo que buscarão conduzir os acontecimentos, deverão saber serem levados por eles.
Ao final, é aí que reformistas e esquerdistas se encontram. Numa autoconfiança ilusória. Os primeiros superestimam sua capacidade de enformar a história em seus planos, os segundos vivem na expectativa de que a história desemboque em seus planos. Uns têm uma visão mecânica da história, outros uma visão mágica. Ambos têm no otimismo, baseado numa visão de evolução histórica positiva, um aspecto nuclear de sua estratégia.
A concepção de história dos reformistas que confirma sua estratégia – aqui também podem ser incluídos todos os que se convencionou chamar de “dualistas” ou “etapistas” – crê que a ação política estratégica (com ênfase na disputa de poder do Estado) pode levar, sem os riscos que advém de rupturas, ao acúmulo de vitórias parciais que resultariam, ao fim e ao cabo, numa situação qualitativamente superior. Do ponto de vista das relações sociais e políticas esse segmento da esquerda (atualmente majoritário) aposta muitas vezes na conciliação de classes, ou em etapas de predomínio burguês e tende sempre ao apaziguamento do antagonismo de classes e do apassivamento das classes subalternizadas. Subestimam, portanto, o enorme poderio material e ideológico das classes dominantes, seu ódio de classe e o papel efetivo que o Estado cumpre no capitalismo.
Os esquerdistas – aqui incluo também os sectários e dogmáticos – também têm no tempo linear um fundamento importante de sua estratégia. Seria exagerado dizer que eles executam um plano estratégico. Sua atividade consiste mais em declamar princípios, terras prometidas, atestados de pureza, na expectativa que as classes exploradas e oprimidas, por conta de sua genética revolucionária, mais cedo ou mais tarde, atenda ao seu chamado. Aqui se denuncia toda forma de política profana, portanto, de luta efetiva por poder ou hegemonia, se sacraliza as classes subalternizadas e as teorias e experiências revolucionárias pretéritas.
Bensaïd chama a lógica que permite esse encontro entre reformistas e esquerdistas no tempo linear de “metafísica dualista do sujeito e do objeto”, como se vê abaixo:
“O Estado constitui um núcleo estratégico decisivo da luta revolucionária. Mas não pode ser mudado a qualquer momento. Tentar este objetivo fora do tempo significaria simplesmente opor uma vontade arbitrária à uma passividade inerte, uma subjetividade absoluta à uma objetividade morta, como se a questão do poder estivesse permanentemente colocada em sua forma paroxística. As duas abordagens baseiam-se numa metafísica dualista do sujeito e do objeto. É por isso que a rotina parlamentar e a gesticulação esquerdista são complementares.”³
Bensaïd, Daniel Lênin ou a Política do tempo partido
Ou ainda:
“Ao colocar a criatividade da ação coletiva organizada sob a exigência de conformidade a alguns princípios, Badiou parece subordinar ainda a política a uma lógica transcendental que a manteria distante das contaminações da opinião e do Estado. Que a política dos oprimidos deva, com vigilância, manter distância do Estado, está correto. Mas esta distância é ela própria uma relação, e não uma exterioridade ou uma indiferença absoluta.”
Então, qual a modulação correta entre estratégia política e visão histórica que pode ter força para deslocar o rumo da história para fora do capitalismo? Em primeiro lugar, o aspecto da incerteza não é apenas uma pitada de pessimismo, ele é estruturante.
“A politização exigida por Derrida implica esse lado irredutível de aposta, “a coragem de um pensamento que sabe que só há correção, justiça e responsabilidade expondo-se a todos os riscos, além da certeza e da consciência tranquila”. Assim como só se perdoa o imperdoável , só existe decisão indecidível, sem recurso à fiança dos ídolos divinos ou dos fetiches científicos. Diferentemente da utopia, uma política estratégica consiste em ter uma mira (e não uma visão), em enxergar além, sem se acreditar já lá.”
Esse caráter de aposta tem repercussão em diversos níveis da formulação estratégica: respeito ao pluralismo e antisectarismo – a dinâmica de coexistência crítica entre perspectivas diversas no interior da esquerda é fundamental para a emergência de uma nova esquerda; dessacralizar as classes subalternizadas é saber que seus passos não estão previstos em manuais, como ensina Thompson (“Senhores e Caçadores: a origem da lei negra”) ver a luta de classes e não apenas nossa classe separadamente; saber que a ação estratégica efetiva nunca se esgota, pois a contingência histórica e o predomínio das classes possuidoras (com raízes milenares) pode o tempo todo colocar tudo a perder e; a compreensão de que a luta pela hegemonia das classes subalternizadas se orientam no sentido do fim das classes e da dissolução do Estado na sociedade civil.
A incerteza, no entanto, não inviabiliza as apostas. Nos momentos de calmaria da história é necessário realizar a preparação, construir a prontidão, avançar na construção de maiorias sociais e trincheiras políticas. Lenin, no seu “Esquerdismo: doença infantil do comunismo” expõe uma lógica acerca da atuação parlamentar que talvez pareça estranha para os raciocínios de perfil dualista/etapista. Ele diz que se havia algum grupo político que poderia abdicar das eleições e do parlamento burguês eram os bolcheviques em 1917, por conta de sua hegemonia crescente nos Soviets, o outro lado da dualidade de poderes. E eles não se abstiveram dessa participação. Conclui, então, dizendo que nas situações nas quais essa hegemonia alternativa está menos consolidada, maior ainda a necessidade dessa participação visando a politização das massas trabalhadoras.
A lógica dessa preparação da prontidão em Lênin está relacionada a sua visão de “crise revolucionária”. Henri Lefebvre diz que as crises produzem “um buraco no tempo” e Bensaïd apresenta um Lênin como gênio estratégico nessa compreensão dos ritmos do desenvolvimento histórico e das crises:
“Em certas condições excepcionais e particulares, o Estado torna-se vulnerável, o equilíbrio de forças torna-se crítico. Não importa quando: há em toda luta ritmo, pulsações e batimentos, que a noção de crise permite pensar.”
E segue:
“Enquanto a política parlamentar conhece apenas uma dimensão temporal, a do encadeamento monótono das sessões e das legislaturas, o tempo das revoluções é concentrado, redobrado sobre si mesmo.”
O desenvolvimento da história e a emergência de revoluções e contrarrevoluções não respeita a lógica interna dos calendários. A História não anda pra frente necessariamente, sua trajetória é multidimensional. A arte estratégica, levada adiante através da política profana e das decisões de tática, deve combinar ao menos dois movimentos. A ação permanente em várias frentes e terrenos no sentido da politização e do aprofundamento do antagonismo de classes, tanto no aspecto ideológico como no aspecto material e de força social efetiva. Com a reelaboração constante, a partir do teste dos planos estratégicos na realidade, dos objetivos e dos procedimentos.
As mudanças históricas se acumulam nas grandes linhas das lutas de classes, não nas filigranas, na pequena política ou nas polêmicas prolixas. Nenhum grupo social ou classe pode inventar ao seu gosto essas grandes linhas históricas. Elas são frutos de processos que se originam em outras gerações, em caldos de cultura, religião e moral, em torno da luta pela reprodução social sob condições materiais herdadas. A história não desembocará naturalmente em nossos anseios, tampouco podemos enquadrá-la inteiramente com nossas ações. Saber atuar no interior dessas grandes linhas buscando movê-las no sentido da emancipação revolucionária é um enorme desafio, sem garantias de sucesso.
Por isso, a partir das experiências do passado, “o único material à nossa disposição. Mas devemos sempre reconhecer que esta é necessariamente mais pobre que a do presente e do futuro”5. Ante o futuro incerto nossa estratégia se sustenta no aprendizado que tiramos desse processo histórico. Bensaïd, em texto que enfrenta concretamente os dilemas da esquerda mundial na virada do século, traz importantes aportes para a construção de planos estratégicos fundamentados nessa perspectiva:
“A nossa insistência não é num “modelo” mas sim naquilo que designamos de “hipóteses estratégicas”. Os modelos são para serem copiados; são instruções de uso. Uma hipótese é um guia para a ação que parte da experiência passada mas que é aberta, podendo ser modificada à luz de nova experiência ou de circunstâncias inesperadas.”
Seguimos no rastro da história dos explorados e oprimidos, das suas ações e sacrifícios que tanto mudaram a História. Não conseguiremos inventar um futuro por geração espontânea, dependemos inteiramente de como nossa classe vai se comportar diante do perigo. Termino com essa bela e dramática passagem de Walter Benjamin Que consigamos liberar o mundo futuro da rotina milenar de exploração e opressão. A forma como Benjamin morre após escrever essas palavras ilustra bem o tamanho de nossa tarefa e responsabilidade.
“O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx,
ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a
tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada
durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.”
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1- Walter Benjamin – Teses sobre o conceito de história. Obras escolhidas, 1987
2- Daniel Bensaïd – Elogio da política profana como arte estratégica em Centelhas. Boitempo, 2017.
3- Daniel Bensaïd – Lênin ou a política do tempo partido. Em Marxismo, modernidade e utopia. Xamá Editora, 2000.
4- LÊNIN, V. I. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. 1920. Global Editora, 2008.
5- Daniel Bensaïd – O início de um novo debate: o regresso da estratégia. https://www.danielbensaid.org/IMG/pdf/2006_08_01_db_150_b_515.pdf
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