Dia Mundial do Veganismo e Novembro Negro
Fazer da luta pela libertação animal uma ferramenta para a soberania alimentar
São quase 20 milhões de pessoas que hoje passam fome no país[1] onde “se plantando, tudo dá”. A maior parte dessas milhões de pessoas são negras.
É a partir desses dois eixos que quero falar do dia de hoje, 1º de novembro, Dia Mundial do Veganismo.
O veganismo popular busca a libertação animal em intersecção com as outras lutas anticapitalistas e antiopressões. No Brasil de 2021, essa militância não pode não falar da fome que assola o país. Para além de falar sobre o assunto, esse movimento tem o potencial de se tornar uma ferramenta para a construção da soberania alimentar.
O Guia Alimentar para a População Brasileira[2] orienta:
“Alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, são a base para uma alimentação nutricionalmente balanceada, saborosa, culturalmente apropriada e promotora de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável”. (grifo nosso)
A quem interessa um sistema que concentra terras, explora cruelmente e mata animais não humanos, e deixa animais humanos à míngua, morrendo de fome? Por que ainda normalizamos a dependência e o excesso de consumo de carne sendo que é fato sabido que a alimentação de base vegetal é a mais saudável? Quando militantes e ativistas veganos falam sobre isso, precisam ser ouvidos, e não relativizados como se fosse algo menor quando “temos problemas maiores para lidar”.
Existe problema maior que a fome hoje no Brasil? O incentivo a hortas urbanas e à agroecologia, por exemplo, poderia trazer essa alimentação vegetal, nutritiva e livre de agrotóxicos para mais perto das pessoas, de forma gratuita ou com preços muito menores. Principalmente para quem mora nas grandes cidades, o consumo de carne significa dependência dos grandes frigoríficos, maior tempo de transporte, além de nem ser mais acessível à população.
Segundo registros da Companhia Nacional de Abastecimento, o ano de 2021 teve o menor consumo de carne em 26 anos, mas isso definitivamente não é um dado a ser comemorado. Um dos motivos para o aumento no preço da carne, como informa reportagem do G1[3], caracteriza-se por um círculo vicioso: a alta de preços é aproveitada pelos pecuaristas para produzir mais animais e, para isso, as fêmeas não podem ser abatidas para continuarem reproduzindo; com menos fêmeas para o abate, o preço da carne disponível aumenta. Que veganismo ganha com isso? E ao que a população recorre em substituição? Não são às leguminosas ricas em proteínas, mas sim aos ultraprocessados.
Sobre os ultraprocessados, o Guia Alimentar nos diz:
“Assim, em resumo, a composição nutricional desbalanceada inerente à natureza dos ingredientes dos alimentos ultraprocessados favorece doenças do coração, diabetes e vários tipos de câncer, além de contribuir para aumentar o risco de deficiências nutricionais”.
Em reportagem da Folha de São Paulo do último dia 22 de outubro[4], há informações sobre estudos da Universidade Federal de Minas Gerais que alertam para uma tendência de encarecimento de alimentos in natura, fazendo os alimentos ultraprocessados serem mais baratos. Isso é grave e pode colocar armadilhas para o movimento vegano; não podemos reproduzir a dependência de empresas e celebrar o surgimento de mais produtos sem ingredientes de origem animal no mercado como se isso fosse resolver o problema de segurança e soberania alimentar e nutricional, e como se isso fosse acessível para pessoas periféricas, além de ser inaceitável trocarmos a riqueza de nossa terra em espécies de alimentos pela padronização estéril que vemos nas fileiras dos mercados.
Nutricídio[5] é morte lenta, é terra seca; veganismo é movimento a favor da vida, pelo brotar de uma nova civilização. Nessa linha, quando o movimento negro grita “Parem de nos matar”, também estamos gritando contra a fome, contra os pântanos e desertos alimentares, que vão aumentando nossos índices de desnutrição e doenças. Também estamos gritando por uma reforma agrária que acabe com a concentração de terra nas mãos brancas do agronegócio[6] e que proteja terras quilombolas e indígenas.
Se, de um lado, o governo federal acaba com o Bolsa Família[7], programa que nos tirou do Mapa da Fome, do outro a resistência segue forjando seus caminhos. Para ilustrar possibilidades de intersecção dessas lutas, quero destacar duas iniciativas.
A primeira é o “Mutirão do Bem Viver em resposta à pandemia” (@mutiraopelobemviver). Tanto na fase de entrega de cestas orgânicas e, muitas, agroecológicas, quanto na atual fase de promoção de espaços comunitários em territórios vulnerabilizados, segue-se o princípio de apenas lidar com produtos que não sejam de origem animal e que sejam justos socialmente; ou seja, os itens das cestas eram sempre vegetais e vindos de pequenos produtores, e acontecem várias oficinas de culinária vegana, entre outras coisas. Nada disso é feito de forma doutrinária, mas sim em diálogo com as necessidades e potencialidades de cada território, apresentando novas possibilidades de pensar o que é abundância.
A segunda iniciativa é a União Vegana de Ativismo, uma “rede em defesa do veganismo popular, unificando e fortalecendo frentes de ativismo político no Brasil e no mundo pela libertação humana e não humana”. Aqui na cidade de São Paulo, participo do coletivo C.A.V.A.L.O. (Coletivo Anticapitalista por um Veganismo Acessível e Livre de Opressão), que já participou de ações de entrega de marmitas para pessoas em situação de rua, constantemente estuda sobre soberania alimentar e se posiciona contra o veganismo de mercado, tem planejado atividades em conjunto com as Cozinhas Solidárias do MTST, e com outros projetos veganos nascidos e atuantes na periferia. Em julho, pelo Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, compilamos uma lista de mulheres negras que promoviam um veganismo popular[8].
O melhor para os animais também pode ser o melhor para nós, e o inverso também é verdade. É possível pensar políticas públicas que valorizem e priorizem a agroecologia[9], os pequenos produtores e as comunidades tradicionais; políticas que promovam informações sobre saúde e defesa da natureza, semeando o caminho para a segurança, autonomia e soberania alimentar da população, enquanto avançamos para um mundo sem nenhuma crueldade.
Referências:
[1]https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/10/fome-brasil-19-milhoes-inseguranca-alimentar/
[2]https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf
[3]https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/10/05/consumo-de-pe-de-galinha-em-alta-e-outros-5-dados-que-revelam-retrato-da-fome-no-brasil.ghtml
[4]https://www1.folha.uol.com.br/comida/2021/10/crise-atrapalha-luta-para-conter-consumo-de-comida-ultraprocessada.shtml
[5]https://ojoioeotrigo.com.br/2020/11/nutricidio-mas-tambem-pode-chamar-de-fome/
[6]https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-branco/
[7]https://www.instagram.com/p/CVf1XDSrsue/
[8][8] https://www.instagram.com/p/CRkSW8hnBVb/
[9]https://www.brasildefato.com.br/2021/10/03/por-que-agricultores-e-pesquisadores-defendem-que-agroecologia-pode-sanar-a-fome-no-brasil
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