um feminismo marxista e ecológico, a luta para os 99%
por Lorrane Carneiro
O mês de março é marcado pela luta feminista. Isso se deve principalmente pela instituição do dia 08/03 como dia internacional da mulher. Essa data deriva, principalmente, da luta de trabalhadoras que reivindicavam iguais condições de trabalho quando comparadas aos homens. Tal luta coincide com a chamada primeira onda do feminismo, na qual também se lutava pelo direito ao voto.
A primeira onda do feminismo é marcada pelas reivindicações de igualdade perante a lei, destacando o direito ao voto e ao trabalho. Esse movimento, protagonizado por pessoas brancas, não contemplava a luta de mulheres negras que devido à herança colonial, sempre foram obrigadas a trabalhar e não tiveram permissão de ocupar lugares de fragilidade. Lembremos que mulheres negras tiveram forte participação do movimento, porém sofreram apagamento de seus corpos e pautas. Também vale destacar que, conquistada a emancipação das mulheres brancas, estas deixaram o trabalho doméstico, cuidados da casa e das crianças, para as mulheres negras, que eram obrigadas a deixar sua família reproduzindo a lógica que prende pessoas de determinadas raças ao ciclo de pobreza.
A segunda onda, por sua vez, pautava, principalmente, o debate sobre direitos reprodutivos, a sexualidade e as desigualdades materiais. Novamente, como as mulheres negras encaixam-se neste movimento? O acesso à pílula anticoncepcional não foi democrático e parece não o ser até hoje, bem como o aborto. Em outro sentido, enquanto brancas deveriam ter sua sexualidade preservada para o casamento, crianças negras são sexualizadas. Quanto à realidade material, dados recentes do IPEA¹ apontam que mulheres negras são as que recebem menores salários e estão mais vulneráveis ao desemprego, ainda que possuam a mesma qualificação que a concorrência.
Entre as herdeiras da segunda fase do feminismo vale lembrar de bell hooks e Audre Lorde. Não por acaso, a primeira escreveu a obra “Não sou eu uma mulher?”, pois não se percebia contemplada por parte da luta feminista. Lorde, que também trabalhava por meio de uma análise interseccional e entendia que essa é essencial para o avanço da luta, no livro Irmã outsider, afirma:
Defender a mera tolerância das diferenças entre mulheres é o mais grosseiro dos reformismos. É uma negação total da função criativa da diferença em nossas vidas. A diferença não deve ser apenas tolerada, mas vista como uma reserva de polaridades necessárias, entre as quais a nossa criatividade pode irradiar como uma dialética. Só então a necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Apenas dentro dessa estrutura de interdependência de diferentes forças, reconhecidas e em pé de igualdade, é que o poder para buscar novas formas de ser no mundo pode ser gerado, assim como a coragem e o sustento para agir onde ainda não tem acesso.
É na interdependência de diferenças mútuas (não dominantes) que se encontra a segurança que nos permite submergir no caos do conhecimento e retornar com as verdadeiras visões do nosso futuro, acompanhadas pelo poder simultâneo de realizar as mudanças capazes de fazer nascer esse futuro. (posição 1802)
Nesse sentido, um feminismo que avance contra o patriarcado e o capital depende de uma luta ampla, para os 99%. Algumas vertentes do feminismo pregam que apenas pessoas com útero que se reivindicam e foram socializadas na condição de mulheres poderiam integrar o movimento. Não temos acordo com isso, pois, pessoas não binárias, homens trans, mulheres trans e travestis sofrem opressões semelhantes àquelas que oprimem mulheres cis. Nos dois primeiros casos, pode-se citar a falta de atenção à saúde, direito ao aborto. Para além disso, faz sentido uma pessoa abandonar um movimento que sempre construiu apenas porque passou a utilizar testosterona? O assédio e a violência nas ruas são recorrentes entre a população travesti e trans feminina, sendo a parcela da população que tem a menor expectativa de vida no país. O feminismo não pode ignorar que pessoas trans e mulheres lésbicas sofrem estupros “corretivos” e não têm o direito de trocarem afetos, portanto deve ser antiLGBTfóbico.
Ainda que as lutas da população trans não sejam idênticas às das mulheres cis, em outros momentos a luta também excluiu mulheres negras, ainda que essas fossem extremamente relevantes para o movimento. O feminismo marxista pretende agregar as lutas de toda a classe trabalhadora e utilizar as diferenças como força, não motivo para segregação.
Há quem alegue que a luta feminista não deveria se preocupar com a opressão sofrida por pessoas trans, que abrigar tal pauta afastaria possíveis aliadas. Discordamos, entendemos que o cultivo de pensamentos estreitos e excludentes impedem a reflexão sobre os reais problemas sociais. Para além disso, concordamos com Janyne a respeito das chaves de pensamento do feminismo:
Um projeto feminista não é, por isso, um projeto ‘feminino’ e não é um projeto de e para mulheres, mas é um projeto de construção e respeito mútuo em direção a uma sociedade de cooperação igualitária – também porque necessita repensar a sua relação com outros marcadores sociais como raça, classe, e localização geográfica, e porque os sujeitos do feminismo são também gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. (…) trata-se de um projeto de qualificação feminista em vista da diversidade e da complexidade da vida humana que possa prescindir e, em última instância recusar, ordenações supremacistas e autoritárias. Daí a importância do reconhecimento da complexidade como critério moral e político em oposição (posição 3652)
A violência sofrida por mulheres cis, trans ou travestis, brancas, negras, amarelas, indígenas ou com deficiência tem o mesmo plano de fundo: o patriarcado. Entretanto, a opressão ocorre de diferentes formas em cada uma dessas pessoas. Existe uma mulher universal? O que é uma mulher? Alguém capaz de gerar filhes? Alguém que passa pelo processo de educação dito feminino?
O objetivo de qualquer socialista é a derrubada do capital que, segundo Arruzza et al., é a origem da opressão de gênero. A mencionada autora também salienta a necessidade de as mulheres ocuparem os trabalhos de reprodução social que é subordinado e subremunerado. Por fim, resgatamos a fala de Talíria Petrone:
nem todo feminismo liberta, emancipa, acolhe o conjunto de mulheres que carregam tantas dores nas costas. E não é possível que nosso feminismo deixe corpos no caminho. (posição 87)
Tais perspectivas trazem à tona a necessidade de unificar a luta dus oprimides em detrimento de lutar entre us nosses.
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Esse texto foi escrito em linguagem neutra. Questionamos a necessidade de utilizar o neutro masculino. Utilizar um gênero em detrimento de outros também é uma escolha política. Dessa forma, neutralizamos nossa liguagem a fim de representar companheires que não se identificam com os gêneros impostos pela sociedade cisheteropatriarcal.
Referências:
Um projeto ecofeminista para a complexidade da vida; Janyne Sattler; Ecofeminismos, fundamentos teóricos e práxis inteseccionais; org. Daniela Rosenco, Fabio A. G. Oliviera, Príscila Carvalho e Tânia A. Kuhnen, 2019 Ape’ku Editora e Produtora LTDA.
As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande; Irmã outsider, Audre Lorde. 2019, Autêntica Editora.
Feminismo para os 99%; Arruzza; Bhattacharya; Fraser.
A urgência do feminismo para os 99%, Talíria Petrone; Introdução ao pensamento feminista negro. 2019, Boitempo.
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