Estupro não é formação de família
Por Isabella de Oliveira*
Ao contrário do que a esquerda anti combate às opressões ainda insiste em acreditar, o que ocorre no Brasil hoje com o debate sobre o PL 1904/204, o chamado PL do estuprador, não diz respeito a um debate descolado da luta contra o ascenso do totalitarismo ao redor do mundo. Ascenso esse que, de forma muito sutil aos olhos menos atentos, tem sua articulação por meio do questionamento de direitos básicos das minorias sociais. Direitos básicos como o de amar, o de existir plenamente, o de escolher a forma mais adequada para se ter um planejamento familiar. Ou, no caso atual do Brasil, de escolher não gestar o filho de um estuprador.
As experiências recentes no Brasil e no mundo nos ensinam que a democracia não é uma forma de sociedade dada, constituída somente em si mesma. Ela precisa ser preservada, defendida, reivindicada diariamente. Ou a gente combate de forma radical pequenos germes que constantemente nascem em diversos lugares ou a gente corre o risco de que novos regimes totalitários se constituam. E que essa mesma democracia, tão frágil e incompleta em tantos lugares do mundo, também não pode ser reconhecida plenamente se ela não é real para todos, todas e todes. As pautas sobre o controle dos corpos não são apartadas da classe trabalhadora e versam diretamente sobre essa mesma garantia de direitos básicos.
Não é como se a gente acordasse um belo dia e enfrentasse a extrema direita nas urnas, como se fosse uma mera disputa entre candidaturas e partidos. Assim como a extrema direita não ganhou força apenas em 2018, o ataque ao aborto legal não é algo inédito ao país. O conservadorismo nunca tira da ordem do dia os ataques aos direitos sexuais e reprodutivos. De tempos em tempos são essas ofensivas que marcam, de forma bem objetiva, a ameaça do fascismo que segue presente, viva, e não tem pudor de se manifestar de forma atroz dentro das sociedades. Se em junho o debate sobre o aborto ganha atenção pública nas mídias e no Congresso Nacional, é preciso lembrar que desde o início do ano o movimento feminista tem pautado a necessidade da defesa do direito ao aborto legal e seguro por todo o país. Não por acaso, o 8M de 2024, na maioria dos estados brasileiros, teve este como mote das manifestações, por identificar que a derrota da extrema-direita nas urnas em 2022 não significou uma diminuição de ataques por parte dos setores fundamentalistas aos direitos sexuais e reprodutivos.
Em 2015, o Brasil viveu o vitorioso movimento que depois ficou conhecido como Primavera das Mulheres. O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pautou o projeto de criminalização da pílula do dia seguinte e gerou uma resposta imediata, levando milhares de mulheres às ruas a gritar que “o Cunha sai, a pílula fica”. Talvez tenha sido uma das poucas palavras de ordem que efetivamente surtiu efeito em sua plenitude: poucos meses depois, Cunha foi deposto e o projeto de lei, enterrado. Assim como em 2015, o movimento feminista volta às ruas, agora se levantando contra o PL 1904/2024, com um novo presidente na Câmara Federal. E não é, portanto, a primeira vez que a resposta ao ascenso conservador no Brasil virá da força do movimento feminista.
Agora, no entanto, a novidade vem carregada de um requinte de crueldade especialmente voltado à infância, que os setores conservadores evangélicos tanto dizem defender. O que o PL 1904/2024 propõe, ao equiparar o aborto legal em casos de estupro acima das 22 semanas ao crime de homicídio, é que as pessoas que gestam serão obrigadas a carregarem os filhos de seus estupradores. Arthur Lira, enquanto presidente da Câmara, ao aprovar o regime de urgência do PL, pode colocar em xeque a dignidade e o direito ao futuro de milhares de meninas por todo país, as maiores vítimas de violência sexual no país hoje. E faz isso para angariar apoio do bolsonarismo dentro da Casa Legislativa, pensando já em suas articulações futuras.
A proposta visa criar um retrocesso na lei que garante o serviço de abortamento legal no país. O Brasil autoriza o aborto legal em três casos: em situações de risco à vida da pessoa que gesta, em casos de fetos anencéfalos (quando não há possibilidade de vida fora do útero, autorizado pelo STF em 2012) e em casos de violência sexual. Ao contrário do que muita gente acredita, não há e nunca houve uma determinação legal do tempo de gestação para o procedimento abortivo em nenhum desses casos.
O que o projeto de lei parece ignorar, no entanto, é que existem muitos impeditivos para o acesso aos serviços de abortamento legal no país. O primeiro e o mais óbvio diz respeito ao acesso na maioria das cidades. Há relatos de pessoas que gestam que precisam viajar horas até conseguirem chegar em hospitais de referência.
Quando se trata da gravidez infantil, a questão ainda é mais complexa: não só a descoberta da gestação na maioria das vezes é tardia, mas também é preciso superar diversas barreiras para conseguir a interrupção da gestação, em especial pelo fato amplamente mapeado de que os agentes destes estupros são pessoas muito próximas das vítimas. O aborto tardio só é necessário porque falhamos duplamente com as meninas: quando foram abusadas e quando não conseguimos identificar a violência assim que ela ocorre para tomar medidas para que não se repita.
Ao invés de estarmos discutindo a ampliação da rede de acesso ao aborto legal e seguro, dos cuidados primários com as vítimas do estupro, estamos debatendo a formação de uma suposta família, no molde mais tradicional possível, onde uma criança pode virar mãe do filho de seu próprio pai ou padrasto.
Não estamos discutindo educação sexual nas escolas, para que essas meninas possam identificar cedo que o que acontece com elas é violência. Lembrando que o próprio termo gravidez infantil já em si é significante de um crime, pois criança não transa: é estuprada.
As ruas de todo o país tem se movimentado contra o PL. As campanhas acertam ao trazer para o centro do debate o eixo que diz que criança não é mãe. Uma menina jovem, violada, não pode ser obrigada a seguir com uma gestação até o final sob argumento de que pode, posteriormente, entregar a criança para adoção. Os mesmos que usam desse argumento canalha são aqueles que defendem a redução da maioridade penal, que aplaudem incursões policiais em favelas e periferias que, via de regra, tem matado crianças como mero dano colateral por todo o país.
Mas é preciso ir além sem medo do debate: não se retrocede em direitos conquistados, independente de qualquer idade. O PL do estuprador pode obrigar qualquer pessoa que gesta, a partir de uma violência, a ser obrigada a carregar o fruto do seu estupro. É sobre o direito à dignidade humana que precisamos falar também.
Ao mesmo tempo, colocar Arthur Lira como o inimigo a ser combatido tem sido um ponto fundamental que serviu para unificar em um só grito as manifestações por todo o país. Mas é preciso lembrar de toda a bancada evangélica conservadora, representante do atraso, que usa oportunisticamente de um conceito de fé para andar com o Brasil ainda mais para trás. Fé essa que defende o embrião no útero, mas pouco se importa pela vida de quem gesta. Não podemos nos esquecer de que, neste momento, o nosso inimigo também passa centralmente pela bancada evangélica, agora representado por Sóstenes Cavalcante (PL), o proponente do PL do estuprador. Este, que diz ao protocolar o projeto, que quer testar o compromisso do governo Lula com a população evangélica. A força do movimento feminista pode impor uma derrota ao Congresso Nacional, que desde as eleições de 2022 ganhou um caráter ainda mais reacionário por todo o país, ampliando suas bancadas de bala e bíblia.
Qual, então, a tarefa para este momento de 2024? Fortalecer as manifestações que vem ganhando centralidade nos últimos dias para o enfrentamento da extrema-direita. Este movimento pode ser decisivo para arrancar uma vitória da democracia, a partir das pautas feministas, em um momento onde o Brasil ainda se arrasta para superar a extrema-direita. Neste momento, assim como se dava há um mês atrás, quando os eventos climáticos extremos arrasavam com todo o território do Rio Grande do Sul, também deve servir para pautar a importância da representatividade comprometida com direitos humanos fundamentais. Se em maio dizíamos para ninguém votar em negacionista climático, agora é preciso dizer também para que não se vote em quem defende o PL do estuprador.
Se Conceição Evaristo já nos alertava que a noite não adormece aos olhos das mulheres, mais do que nunca é preciso sempre seguir o conselho de Gal: sigamos atentas e fortes.
Isabella de Oliveira é feminista e militante do Subverta em São Paulo.
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