Dois anos da invasão de Brasília: o golpe que poderia ter acontecido 

Cenário do ataque e contexto político

Há dois anos atrás assistimos com angústia as cenas lamentáveis de invasores extremados depredando a sede dos três poderes e símbolos da democracia brasileira, forçando um cenário de instabilidade a partir de uma tentativa de ruptura institucional no país. 

Esse ato expôs o projeto autoritário de ataque às conquistas democráticas do povo brasileiro. Desde a ascensão da extrema direita no Brasil e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, observa-se o fortalecimento de uma cultura política que instrumentaliza a democracia liberal para minar suas próprias bases, servindo aos interesses de elites reacionárias.

O episódio de 8 de janeiro de 2023 resultou tanto da crescente radicalização discursiva quanto de ações concretas articuladas por atores militares, políticos e financeiros da extrema-direita bolsonarista.


A resposta rápida do executivo, convocando os representantes do judiciário e do legislativo, foi fundamental para a garantia da manutenção do resultado do legítimo e liso processo eleitoral de 2022, que representou um passo importante no enfrentamento à extrema-direita no Brasil, ainda que a efetiva superação seja um desafio histórico. Quase dois anos depois, uma série de ações e operações da Polícia Federal confirmaram que o ataque à sede dos Três Poderes em Brasília não foi um episódio isolado, mas um dentre vários episódios consequentes de uma trama golpista. 

Nesse contexto, é essencial resgatar episódios golpistas durante o governo Bolsonaro e após sua derrota nas urnas, pois, como o relatório da Polícia Federal divulgado em 2024 apontou, as intenções autoritárias não surgiram apenas em 2022. Desde 2018, Bolsonaro fazia acusações infundadas de fraude eleitoral, visando minar a legitimidade das instituições democráticas.

Um momento emblemático foi o 7 de setembro de 2021, quando milhares de apoiadores invadiram a Esplanada dos Ministérios, incitados contra o STF e o Congresso. O ato golpista, que obteve apoio financeiro do agronegócio e visava instaurar um estado de sítio, foi desarticulado por lideranças do Judiciário, da PGR e das polícias militares. 

Após a derrota de Bolsonaro, o país assistiu a um aumento das mobilizações golpistas: acampamentos em frente aos quartéis, bloqueios de estradas e até uma tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília. Esse clima culminou, em 2023, nos ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. 

Mais recentemente, em 13 de novembro de 2024, houve outro atentado em Brasília. Francisco Wanderley Luiz, ex-candidato a vereador pelo PL, lançou duas bombas nas proximidades do STF e da Câmara dos Deputados. Esses eventos mostram como a extrema direita continua a ameaçar a democracia, seja nas redes, nas ruas ou nas casas legislativas, por meio da incitação de atos de violência política.

Resposta institucional e investigações

Esses episódios evidenciam a profundidade e a organização desse projeto autoritário. Em novembro de 2024, operações da Polícia Federal, com investigações e inquéritos, apontam os elementos concretos descobertos sobre a organização de um plano golpista, muito bem articulado pelas altas patentes do militarismo no Brasil, setores do agronegócio e a chapa derrotada nas eleições, para uma tomada de poder à revelia do processo eleitoral e dos ritos democráticos do país. 

A organização da trama golpista passa a ser desvendada de forma mais concreta a partir da Operação Contragolpe, deflagrada pela PF, que prendeu quatro militares, da ativa e da reserva, que eram do grupo de operações especiais chamado de “kids pretos”, e um policial federal, um dos responsáveis pela segurança de Lula durante o governo de transição. De acordo com as investigações, eles elaboraram o plano “Punhal Verde e Amarelo” que previa assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Um desses militares presos, o general de brigada Mario Fernandes, foi secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República em 2022 e assessor parlamentar de Eduardo Pazuello. 

O plano golpista era parte de operação denominada pelos investigados de “Copa 2022” e, de acordo com o relatório da PF, deixa nítido que era uma articulação altamente refinada, com rigorosos protocolos de segurança, para garantir que não houvesse responsabilização dos envolvidos caso o plano falhasse e fosse desvendado. 

A operação Contragolpe segue poucos dias depois e indicia mais 37 pessoas por por tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado democrática de Direito e organização criminosa. Entre os indiciados, estão incluídos Jair Messias Bolsonaro e Braga Netto, que compunham a chapa derrotada, e o que o relatório deixa nítido é que eles não só sabiam, mas atuaram ativamente para que o plano golpista fosse organizado e executado. 

Estivemos muito próximos de 1964. A diferença entre 2022 e a triste noite que durou 20 anos pode ser explicada a partir de alguns fatores: a recusa do governo estadunidense de legitimar o processo de golpe; a não adesão de militares de alta patente do exército brasileiro e a dificuldade de efetivar o atentado em 15 de dezembro, não por inabilidade, mas pela ausência do aval por Jair Bolsonaro que ainda lutava para conseguir adesão do alto comando do exército.  

A divulgação do relatório pela Polícia Federal, após a retirada de sigilo por Alexandre de Moraes, deixa nítido que a organização do plano golpista começa muito antes de 2022, do resultado eleitoral, e se deu de forma muito mais concreta para além de uma insinuação via discurso contra as instituições democráticas pelas lideranças do bolsonarismo, o que muitos defensores de Bolsonaro alegavam até as operações da PF. Se antes a avaliação sobre um golpe de estado se apresentava por meio de episódios cujos indícios eram graves de tentativa golpista, cujo auge se deu em 8 de janeiro de 2023, agora ela se materializa a partir das investigações da polícia federal, do indiciamento de quarenta pessoas e da prisão de militares de alta patente, um feito inédito na democracia brasileira que dispõe de muitos mecanismo para garantir a proteção da alta classe do militarismo.

Ao olhar para o Brasil de 2024, que desmonta um trama golpista altamente articulada, é impossível dissociar do mesmo país que pune com execuções sumárias seus crimes comuns, resultado direto da ação violenta da polícia militar na maioria dos estados brasileiros, sendo uma das polícias que mais mata no mundo. E também não é um detalhe que a maioria das vítimas dessas ações violentas sejam negras, pobres e periféricas, em um país onde a impunidade para assassinos vinculados ao estado é a regra. Essa mesma polícia até hoje atua com métodos similares aos dos torturadores da ditadura militar no país, em um país que agora pede sem anistia e prisão para aqueles responsáveis pela organização de uma trama golpista.

As investigações da Polícia Federal apontam que Jair Bolsonaro não só sabia mas participou ativamente da tentativa de golpe. A chamada “minuta do golpe”, encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, teve produção direta de Bolsonaro que, também foi um dos responsáveis por conversar diretamente com as Forças Armadas para que aderissem ao plano. Além disso, era Bolsonaro quem fazia os discursos inflamados incitando apoiadores a atacar a democracia e clamar por um golpe de estado. Os impactos desse discurso, que comprovadamente não era apenas um mero discurso, ainda vão deixar marcas em nossa democracia que não serão facilmente superadas. Uma pesquisa divulgada pelo Datafolha em dezembro de 2024 aponta que 69% da população brasileira defende um regime democrático, cerca de 10% a menos do que há dois anos atrás. 

Os ataques de Bolsonaro a lisura do processo eleitoral, o papel do STF e, em especial, o discurso anticomunista permearam toda sua passagem pelo Palácio do Planalto. Aqui é importante destacar que o relatório da PF também deixa nítido que era de conhecimento dos articuladores do golpe a lisura do processo eleitoral e das urnas, uma vez que diversos órgãos atestaram a legitimidade das eleições. A narrativa de fraude nas urnas foi feita de forma consciente de que se tratava de uma inverdade, repetida mil vezes desde o processo eleitoral de 2018, quando se afirmava que a vitória de Bolsonaro deveria ter se dado no primeiro turno e, portanto, já indicava uma fraude nas urnas eletrônicas. E, ainda assim, foi um dos elementos que se colocou para inflar socialmente o discurso de que o país estaria em risco e próximo a um golpe comunista, em um discurso bastante similar ao de 1964.

Como diz o relatório:

“As conversas travadas revelaram que os investigados, apesar de todas as tentativas, tinham consciência da inexistência de fraudes nas eleições presidenciais realizadas em 2022. No entanto, seguindo o planejamento da empreitada criminosa, continuavam a utilizar a metodologia desenvolvida pela milícia digital para reverberar por multicanais a ideia de que as eleições presidenciais foram fraudadas, estimulando seus seguidores a “resistirem” na frente de quarteis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o Golpe de Estado.”

É preocupante reparar a força que o discurso anticomunista ainda tem no Brasil, o quanto ele segue vivo e articulado e o quanto há uma distorção proposital sobre garantias de direitos básicos e o que efetivamente representa um sistema comunista. Um dos questionamentos recorrentes que foram colocados para deslegitimar o debate da escala 6×1 diz respeito justamente a uma tentativa de associar a redução da jornada de trabalho a um simples desejo de não trabalhar, e não sobre os impactos na saúde e na vida concreta do trabalhador. 


Já o general de quatro estrelas Braga Netto é outro ator que assume um papel central na organização da trama golpista. Não por acaso, é preso em dezembro de 2024 por tentar interferir nas investigações, em especial incidindo sobre Mauro Lourena Cid, para tentar obter informações sobre a delação de Mauro Cid.

Foi na casa de Braga Netto que foi organizada a reunião que começou a traçar o plano golpista, como foi amplamente divulgado pela imprensa, mas seu papel como articulador esteve para muito além disso: ele também era responsável por incitar as forças armadas a aderir ao golpe, chegando inclusive a ameaçar familiares de militares que não sinalizaram positivamente. 

As investigações só passaram a ser possíveis a partir da delação de Mauro Cid: enquanto ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel é um dos personagens centrais do inquérito que investiga a entrada ilegal no país de joias dadas ao governo brasileiro pela Arábia Saudita. Cid também foi preso por quatro meses acusado de inserir dados falsos sobre vacinação do ex-presidente contra Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde (sistemas SI-PNI e RNDS). O que hoje se tem enquanto entendimento é que essas eram etapas fundamentais para um possível exílio de Bolsonaro, caso o plano golpista falhasse: o cartão de vacinação fraudado possibilitaria a entrada dele nos Estados Unidos e o dinheiro das vendas das jóias daria suporte financeiro para sua estadia no país.  


Conexão com o passado e reflexão atual

Essa complexa articulação golpista nos remete à necessidade de analisar como tais ações se inserem em um contexto histórico mais amplo. No Brasil, é impossível dissociar a luta contra a extrema-direita da luta pela justiça social e pela proteção das conquistas democráticas. Uma análise histórica das tentativas e execuções de golpes militares no Brasil revela como a instabilidade golpista foi uma constante ao longo de nossa história, sendo mais regra do que exceção. Desde a Proclamação da República, em 1889, liderada por setores do Exército, até os dias atuais, intervenções autoritárias têm sido uma constante, com setores militares frequentemente atuando como “poder moderador”, acima das instituições democráticas. 

Esse ciclo de intervenções tem raízes profundas. O golpe militar que depôs João Goulart em 1964, precedido por articulações golpistas como o Levante Integralista de 1938 e a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, são exemplos claros dessa impunidade, que perpetua a instabilidade política e reforça ciclos autoritários.

Esse histórico de ações militares golpistas reforça a necessidade urgente de responsabilizar os envolvidos para evitar novos ataques à democracia, além de fortalecer mecanismos que sustentam a democracia no Brasil. 

A luta contra a extrema direita é uma luta pela sobrevivência, por nossas liberdades e direito de organização dos setores progressistas e das esquerdas. A defesa da democracia neste momento é essencial para garantir as bases formais como parte de uma tática para construir uma democracia popular e radical. Essa defesa deve ser firme e intransigente, lutando pela responsabilização dos golpistas – dos articuladores aos financiadores e líderes políticos que os incitam.

Nesse contexto, é essencial impedir a aprovação de uma nova Lei de Anistia. O atual projeto no Congresso precisa ser arquivado, pois representa um grave risco ao fortalecimento da democracia. 

Além disso, é fundamental destacar que combater os movimentos militares envolvidos em golpes ao longo da história do Brasil vai além da punição individual. Exige um processo profundo de reorganização das Forças Armadas, com uma reflexão crítica sobre seu papel na sociedade brasileira e sua relação com a democracia. As investigações em curso reforçam a necessidade de responsabilização penal dos articuladores de ações golpistas, mas é essencial ir além: discutir o militarismo no país, sua formação e doutrinação, que frequentemente distorcem ou negam episódios de autoritarismo em nossa história.

Para isso, é indispensável fortalecer a mobilização popular, como demonstraram os diversos atos convocados pelas organizações de esquerda em rechaço ao 8 de janeiro e às ações golpistas. Verdade e justiça são pilares fundamentais para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, que não pode ser marcada por acordos de esquecimento ou de impunidade, mas sim pela plena e efetiva responsabilização daqueles que atentaram contra as liberdades e direitos políticos-sociais do povo brasileiro.


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