Quando o rio Piracicaba acamou: sintomas da mercantilização da vida

Por Jéssica Gouvea – Bióloga, Mestra em Biodiversidade e Doutoranda em Ecologia. Militante Ecossocialista pelo Subverta

Ano passado, Piracicaba, cidade do interior de São Paulo, acordou cheirando a morte. Por quase toda a cidade era possível sentir o odor fétido e nas margens do rio Piracicaba era possível visualizar a cena chocante de milhares de peixes mortos. Uma semana depois o crime atingiu o Tanquã, uma das principais Áreas de Proteção Ambiental da região no que se refere à proteção da vida aquática e da avifauna.

O crime ambiental mais tarde foi comprovado: A Usina São José S/A Açúcar e Álcool, pertencente ao Grupo Farias, foi responsabilizada pelo despejo criminoso de resíduos orgânicos produtos do processamento da cana-de-açúcar. O crime causou a mortandade de mais de 235 mil indivíduos de peixes em estimativas conservadoras realizadas pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). Esse cálculo ainda não inclui outras vidas perdidas, como crustáceos, plantas aquáticas e outros animais afetados pelo impacto do crime na cadeia trófica, nem o impacto socioeconômico nas comunidades ribeirinhas. A estimativa é de que o rio precise de 9 anos para se recuperar e restabelecer a dinâmica ecológica.

O que aconteceu no rio Piracicaba e no Tanquã não é um “acidente” ou “desastre” ambiental, mas a expressão brutal da lógica do capital. A usina de açúcar e álcool que despejou poluentes ilegalmente no rio não cometeu um erro, agiu conforme a essência do sistema capitalista, que subordina a natureza e a vida humana à acumulação de lucro.

Aqui vemos a contradição fundamental do capitalismo: de um lado, a necessidade de reprodução do capital, que exige produção acelerada e redução de custos; de outro, a destruição das próprias condições materiais que sustentam a vida. E não é por acaso a usina poluidora ser uma emblemática representante do setor que mais consome água no país: o agronegócio. E como toda empresa capitalista, escolheu o caminho mais barato: despejar os resíduos no rio. Na lógica do capital, pagar eventuais multas sai mais em conta do que investir em tratamento adequado. Nesse cálculo, vidas nem entram como parâmetro a ser levado em consideração.

O crime do rio Piracicaba não foi o primeiro nem será o último enquanto vivermos sob esse sistema. A prática de despejo de poluentes sem tratamento em rios por grandes indústrias é regra, não exceção e ela escancara três dimensões da crise ecológica sob o capitalismo:

  1. A exploração de classe e o racismo ambiental: Os poluentes não afetam todas as pessoas igualmente. Enquanto os milionários do Grupo Farias protegem seus lucros, comunidades ribeirinhas, pescadores e pequenos comerciantes locais sofrem diretamente com a poluição.
  2. A exploração predatória da natureza e o especismo: O rio é tratado como “recurso” hídrico e não como corpo, os peixes como “estoque pesqueiro” e não como vidas, e assim tudo é convertido em mercadoria. 
  3. A falácia da “responsabilidade ambiental” no capitalismo: A CETESB, o MP e a polícia investigaram e responsabilizaram a Usina, a licença foi suspensa e a empresa foi multada, seguindo o rito de autuação por infração ambiental que o Estado exige. Porém a multa foi irrisória e não paga as vidas perdidas e os impactos sociais resultantes. Punições não solucionam um problema que é estrutural: a própria existência da propriedade privada e sua lógica de lucro acima da vida.

A solução não virá de ajustes tecnocráticos ou multas simbólicas. Enquanto a produção estiver organizada para o lucro privado, os rios do mundo continuarão a acamar. O caminho exige uma transformação radical: expropriar a usina e colocar seus meios de produção sob controle de trabalhadorus, rompendo de vez com a lógica do lucro. Precisamos enterrar o modelo predatório de produção de commodities disfarçado de “alimentação”. O agronegócio, maior consumidor de água doce no país, exporta nossas águas na forma de grãos e combustíveis. Ao lado do garimpo, os agrotóxicos estão entre os principais poluidores de corpos hídricos fora dos centros urbanos.

Precisamos superar a ruptura histórica entre campo e cidade. A produção rural deve ser integrada à indústria de forma agroecológica, eliminando a alienação do que se entende como “rio de água potável” e “rio para despejo de esgoto”. Os centros urbanos precisam integrar rios e florestas, respeitando as várzeas, desconcretizando rios, recompondo matas ripárias, transformando os cursos d’água em eixos de vida, não em canais de esgoto. Isso exige a imediata reestatização do saneamento básico, garantindo acesso universal à água limpa e tratamento de efluentes para todes.

Por meio de uma transição ecossocialista um novo modelo de sociedade é possível, onde o cuidado dos corpos hídricos possa ser socializado pelas comunidades que os compartilham; onde a produção alimentar possa ser planejada respeitando os limites ecológicos do planeta, de forma agroecológica, onde as indústrias possam servir ao propósito de produção para a vida e não para o lucro.

Da mortandade desde o rio Doce até o rio Piracicaba, um alerta vermelho está em curso: ou superamos o capitalismo, ou assistiremos à morte lenta de todos os rios – e com eles, da própria possibilidade de algumas vidas na Terra, entre elas, a vida humana. A crise ecológica não é “algo para se resolver depois”. A natureza não é secundária, é a base material da luta de classes.


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