Por uma guinada à esquerda do governo Lula para derrotar a extrema-direita
Os perigos do avanço da extrema-direita no Brasil se atualizaram passados mais de dois anos da eleição de Lula. No cenário internacional, a eleição de Trump à presidência dos EUA foi um passo decisivo no fortalecimento do neofascismo no mundo, dessa vez com o apoio da maioria da Câmara, do Senado e da Suprema Corte americanas, e com o alinhamento político e econômico das chamadas Big Techs. O sinal está aberto para a guerra política dos barões da tecnologia em favor da ultradireita, através da manipulação de algoritmos e fake news. Outro retrocesso é a disposição de Trump em colocar o meio ambiente e a natureza entre seus principais inimigos ao sair do Acordo de Paris, aprofundando o colapso ambiental que vivemos. A chegada de Milei ao poder na Argentina, o crescimento da extrema-direita nas eleições legislativas na Alemanha, Áustria e na França para o Parlamento Europeu, bem como o genocídio do povo palestino comandado por Netanyahu, são expressões recentes desse fenômeno, que ganha impulso a partir da crise do capital de 2008. Internamente, pesquisas de opinião indicam que a avaliação do governo Lula é preocupante, embora em contraste com seus potenciais adversários figure em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2026. As atuais pesquisas poderiam apontar cenários mais desafiadores caso houvesse um adversário definido.
O bolsonarismo esteve acuado no primeiro ano de governo, pelo rechaço institucional e social à tentativa do golpe, que teve seu ápice em 8 de janeiro de 2023, mas retomou a ofensiva, especialmente nas eleições municipais. Mesmo com Bolsonaro desgastado pela inelegibilidade, e com derrotas importantes do Partido Liberal do ex-presidente em sete capitais no 2º turno, os resultados eleitorais de conjunto foram expressivamente mais favoráveis ao Centrão, que é parte da direita tradicional, e à extrema-direita. Os cinco partidos que mais elegeram prefeituras foram PSD, MDB, PP, União Brasil e PL. O PL somou em número absoluto 15,7 milhões de votos para prefeituras, sendo o partido com maior número de votos, apesar de ser o PSD o que mais levou prefeituras. Nas eleições proporcionais, MDB foi o partido que mais recebeu votos, seguido de PP, PSD, União Brasil e PL. Muitas capitais e cidades médias foram disputadas no 2º turno apenas por candidaturas que apoiam Bolsonaro. O resultado eleitoral de 2024 demonstra que a disputa eleitoral segue muito difícil para a esquerda. É provável que parcela do Centrão venha compor frente ampla a ser liderada pelo PT na próxima eleição presidencial, porém o núcleo duro do Centrão e, por consequência, a maioria dos políticos e partidos desse campo fisiológico, não deve optar por uma terceira via, e sim por uma candidatura de extrema-direita competitiva e que possibilite maioria na Câmara e no Senado. Aliás, algo que fica patente nesse processo eleitoral é que a extrema-direita não se limita a Bolsonaro, podendo ser capitaneada por outras figuras públicas, e até com verniz de “certa civilidade”, como no caso do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
A decisão do STF de aceitar a denúncia contra Bolsonaro e outros sete integrantes do primeiro escalão de seu governo — três generais do Exército, um almirante da Marinha, um tenente-coronel da ativa do Exército e dois ex-delegados da Polícia Federal — é um marco no enfretamento ao golpismo das elites civis-militares no Brasil. Seguida agora pela decisão de acolhimento da denúncia ao núcleo 2, com mais seis réus, do chamado “gerenciamento de ações”. Por isso, a luta contra a anistia e pela responsabilização penal de todos 34 denunciados, em especial Jair Bolsonaro, é estratégica para evitar que essas violações se repitam. Golpistas não responsabilizados pelos crimes cometidos contra as liberdades democráticas e os direitos humanos formam sempre a antessala de novas tentativas de golpe. Com a conclusão das investigações e início do processo por tentativa de golpe e abolição do Estado Democrático de Direito, está sendo desfeita a caraterização precipitada de um golpe voluntarista e amador. É inegável que existia um plano golpista, com minuta de decreto de Estado de Defesa, roteiro de prisão de ministros do STF e assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
O julgamento no STF empurrou os bolsonaristas novamente para a defensiva. Neste início do ano, a extrema-direita não demonstrou o mesmo fôlego nas mobilizações de rua do que antes. Por outro lado, a esquerda tampouco ganhou terreno nas mobilizações que organizou contra a anistia e em descomemoração do golpe militar, influenciado por um governo que não convoca as massas para a luta política. Enquanto isso, o Centrão segue se fortalecendo na arena institucional, precificando para ambos os lados o destino do PL de anistia aos golpistas. É a esquerda que deveria estar ampliando seu alcance, com base em uma agenda de transformações. A consolidação do poder do Centrão, favorecido pelo clientelismo exponencial via emendas impositivas, que sequestra 25% do orçamento discricionário, não pode nos levar à armadilha de confundir a disputa de rumos da nação com a capacidade de cooptação pelo governo de segmentos expressivos do Centrão para compor a frente ampla. Um governo reformista de baixa intensidade, incapaz de atender as necessidades das maiorias, pode abrir caminho para uma nova derrota. É certo que a eleição de Lula em 2022 impediu uma derrota histórica. Se viesse um revés, a tendência de um fechamento de regime era real. Uma ameaça imediata de regressão civilizacional e ruptura democrática nos espreitou muito de perto. Portanto, é hora de afastar de vez esse perigo e isso exige uma inflexão à esquerda. Num contexto de resiliência da extrema-direita, não cabe ao governo sucumbir diante de falsidades como a “fake news do Pix”, quando os acontecimentos nos demandam muito mais, como fez Gustavo Petro, presidente da Colômbia, se opondo com firmeza à política migratória xenófoba de Trump para a América Latina.
A luta contra a anistia e pela prisão de Bolsonaro é central, mas não suficiente. Democracia também se constrói com a conquista de direitos sociais. É necessário que o país alcance ganhos sociais estruturais para a classe trabalhadora, ou pelo menos que o governo se coloque abertamente favorável a esses ganhos. Em grande parte, o programa que elegeu Lula em 2022, principalmente a agenda de investimentos sociais, tem sido abandonado. O governo teve suas tentativas de ações políticas contidas pelo poder das Casas Legislativas, onde principalmente a Câmara Federal tem servido de ponta de lança de uma agenda recessiva, conservadora e antidireitos. O governo Lula reconstruiu políticas públicas e programas sociais que foram arruinados ou enfraquecidos durante o governo Bolsonaro, principalmente nas áreas de segurança alimentar, saúde, educação, meio ambiente, assistência social, direitos humanos e participação social, e isso não é pouco. Além de criar e recriar ministérios fundamentais para a execução de políticas sociais, a exemplo do Ministério dos Povos Indígenas e Ministério da Igualdade Racial. Em 2023, a insegurança alimentar severa no Brasil caiu 85% em relação ao ano anterior. O Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial divulgou que 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome no país. Uma redução maior que a metade do desmatamento da Amazônia Legal, de 11.568 km², em 2022, para 4.314 km², em 2024. Um avanço na política de proteção dos direitos indígenas e da cultura, além do programa pé-de-meia voltado para a educação. Enfim, é possível apontar avanços, mas circunscritos às possibilidades de um governo sitiado politicamente e cerceado por uma agenda econômica fiscalista.
Falta avançar em medidas estruturantes de combate à desigualdade social, que somente serão viabilizadas com mudanças substantivas na política econômica e uma aposta decidida na mobilização social. Tem potencial para alterar a correlação de forças em favor da classe trabalhadora a luta contra a desumana escala 6×1 na jornada de trabalho; a taxação de grandes fortunas, heranças, dividendos e poluidores; o fim de isenções fiscais imorais e injustificadas; o fim de supersalários de agentes públicos e alteração das regras desproporcionais e anacrônicas da pensão de militares; contra o Orçamento Secreto; pela justiça socioambiental e transição energética; e por mais investimentos sociais; e também na luta antirracista, feminista, em defesa dos direitos LGBTAQIAPN+ e anticapacitista, em uma realidade de genocídio da juventude negra em favelas, feminicídio, transfeminicídio, crescente discurso de segregação escolar de crianças com deficiência e retrocessos na Reforma Psiquiátrica. No entanto, o governo segue emparedado politicamente, de um lado, pelo bolsonarismo, e de outro, pelo Centrão. Segue também fragilizado pela polícia econômica, fiscal e monetária que implementa, não apenas por pressão do mercado financeiro, mas também por seus próprios equívocos.
Ainda que limitados pelo Arcabouço Fiscal — que mantém o limite de gastos sociais, trouxe alterações prejudiciais ao BPC e no cálculo de reajuste do salário mínimo —, acertos do governo Lula contribuíram para um nível moderado de crescimento econômico e para a redução do desemprego aos 6,6%, menor patamar desde o início da série histórica em 2012. Foram importantes para isso a reconstrução de programas sociais, a oferta de créditos a pequenas empresas e ao setor produtivo, a renegociação de dívidas de famílias de baixa renda e mesmo a reduzida valorização do salário mínimo, somados à tardia e tímida redução da taxa básica de juros pelo Banco Central até junho de 2024. Entretanto, os índices econômicos dos últimos trimestres indicam uma desaceleração, puxada pela alta da taxa Selic, agora sob gestão de Galípolo no BC, e corte superior a 70 bilhões em gastos públicos para os anos de 2025 e 2026. Se o crescimento econômico já tinha efeitos redistributivos limitados, devido à alta dos preços dos alimentos, presença da informalidade e uberização no mundo do trabalho, e pelo peso de setores como o agronegócio, extrativista e financeiro na economia brasileira, cujo modelo de expansão é altamente concentrador de renda, a situação tende a piorar se confirmando uma desaceleração da economia, com a diminuição de espaço para políticas sociais e aumento do desemprego, o que deve se traduzir em menos aprovação ao governo.
A elevação da taxa de juros, os cortes de gastos públicos para cumprimento da meta de déficit zero e as emendas impositivas interditam políticas estruturais de enfrentamento às desigualdades sociais, às violações de direitos humanos e à injustiça climática. Movimentos sociais como UNE, MST, MTST e APIB reconhecem a reconstrução de políticas públicas fundamentais em curso, porém criticam a conciliação irrefreada com os interesses do mercado financeiro e do Centrão. É necessário reverter o arrocho do financiamento às universidades públicas, institutos federais e à educação como um todo para a construção de um país soberano, com produção científica, tecnológica e desenvolvimento social. É preciso atender a demanda por desapropriação e assentamentos a milhares de acampados que aguardam há décadas por reforma agrária, e disponibilizar mais crédito para pequenos agricultores, agricultura familiar, agroecológica e assentamentos, bem como ampliar a capacidade de armazenamento. Sem isso não resolveremos a longo prazo o problema da especulação financeira e cambial em torno dos preços dos alimentos. Seguiremos dependentes de um modelo de agricultura voltado para a exportação de commodities, com o custo de enorme déficit ambiental.
Sem a geração de emprego sustentável, políticas sociais e demarcação de terras não se rompe o ciclo de violência a indígenas e degradação ambiental causados pela expansão do garimpo ilegal e da fronteira agrícola. É ilusório se creditar unicamente à repressão policial e à fiscalização de agências ambientais a erradicação do garimpo ilegal e conflitos fundiários. São ações importantes que devem estar combinadas com medidas estruturantes que superem a vulnerabilidade social das populações locais. Há conquistas na política de moradia popular com a entrega de milhares de unidades habitacionais, pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”, mas é necessário muito mais, a começar por maior foco na população de baixa renda, fortalecimento da modalidade “entidades”, urbanização de favelas com planejamento participativo e integração da política de moradia ao acesso a serviços essenciais e ao direito à cidade.
Apesar das dificuldades, Lula e seu governo continuam sendo o grande trunfo dos setores populares e da esquerda para barrar a extrema-direita na próxima eleição presidencial. Mesmo com todas as contradições e conciliações que rejeitamos, é destacadamente o melhor candidato para mais uma vez derrotar o bolsonarismo e a extrema-direita. Faz diferença sua trajetória de retirante e trabalhador, de sindicalista e de resistência contra a ditadura militar, de oposição a governos neoliberais, da presidência de dois governos com crescimento econômico e conquistas sociais, da anulação de sua injusta prisão devido à parcialidade e arbitrariedades da Lava Jato, da chegada à presidência pela terceira vez ao derrotar o projeto de destruição e negacionismo de Bolsonaro, de sua vitória à tentativa de golpe, da reafirmação da democracia e reconstrução de políticas públicas em seu 3º governo. Contudo, não podemos nos enganar. A memória imediata de Lula 3 será mais decisiva do que de Lula 1 e 2. Poderá se revelar um erro fatal o governo prosseguir amarrado em uma política de ajuste fiscal desmedida. Ainda há tempo de conquistarmos espaço político que nos livre de uma roleta russa eleitoral, cujo resultado é imprevisível e de riscos extremos. Um bom exemplo é a acertada política de ampliar a faixa de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, pelo caráter progressivo da medida. Com o passar dos meses a proposta foi dobrando forças contrárias, inclusive o mercado financeiro, o que poderia servir para encorajar o governo a batalhar na sociedade pela tributação de grandes fortunas, lucros e dividendos. Outro exemplo é a isenção da tarifa de energia elétrica a consumidores inscritos no CadÚnico e com consumo até 80 quilowatts-hora por mês.
O PSOL apoia o governo Lula por compreender a responsabilidade histórica de derrotar o bolsonarismo. Isso não significa que o partido deva se omitir em criticá-lo na disputa dos rumos da política e da consciência social, daí nossa posição de não compormos a gestão, a fim de assegurar nossa autonomia, com exceção da ministra e companheira de partido Sônia Guajajara, que é uma reivindicação do movimento indígena e tem o simbolismo de um reconhecimento inédito à luta dos povos originários. Assim foi em relação ao Arcabouço Fiscal, à eleição da Mesa Diretora da Câmara Federal, e quando houve o ajuste fiscal do fim de 2024, momentos que abrimos divergência pública. Somos, portanto, base do governo, mas também uma alternativa de esquerda aos limites da conciliação de classes. Defendemos uma guinada à esquerda do governo, que desmonte a asfixiante política de juros do Banco Central e que retire definitivamente de pauta a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, não repetindo assim o ecocídio encarnado na hidrelétrica de Belo Monte.
A luta contra o Orçamento Secreto deve seguir, traduzida hoje na luta contra a cassação do mandato popular do companheiro e deputado Glauber Braga, uma vingança de Arthur Lira contra um parlamentar e nosso partido que enfrentam com toda combatividade essa aberração nas contas públicas e que denunciam esquemas que envolvem pessoalmente o próprio ex-presidente da Câmara Federal. Por isso, em defesa da democracia e contra a perseguição à esquerda, Glauber fica! Mas não estejamos somente na defensiva, que possamos lutar por conquistas para a classe trabalhadora, reconectando a esquerda com a esperança de um futuro melhor para as pessoas e o planeta. Será fundamental não reduzirmos nossas apostas à luta institucional e eleitoral. Devemos definir como principal tarefa para os próximos meses dedicar nossa energia militante à construção do Plebiscito Popular pelo fim da escala 6×1 e taxação dos ricos, na unidade entre as Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, assim como defender um projeto popular de transição energética e justiça climática mobilizado para a Cúpula dos Povos, na COP 30, que será realizada em Belém do Pará em novembro, mesmo mês que teremos os 10 anos da Marcha de Mulheres Negras contra o racismo e pelo bem viver em Brasília, como marco na luta feminista.
26 de abril de 2025
Subverta – Coletivo Ecossocialista e Libertário
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