Mulheres contra a devastação: o cuidado e a terra não cabem no lucro

Mulheres contra a devastação - Texto em branco e verde no fundo roxo com a sombra de uma floresta.

Por Clarissa Alves da Cunha e Júlia Câmara

Na madrugada do dia 17 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência e sob protestos abafados, o Projeto de Lei 2159/2021, conhecido como PL da Devastação. A votação, realizada sem o devido debate democrático e técnico, ignorou inclusive alertas de especialistas sobre os riscos socioambientais da medida. A pressa da votação, o esvaziamento do debate e o tratamento misógino e racista direcionado a parlamentares críticas ao projeto revelam que o conteúdo do PL não pode ser dissociado da forma como foi conduzido: patriarcal, racista, autoritária, conivente com os interesses do agronegócio etnocida e do capital predador.

Esse projeto representa uma ameaça direta à vida, sobretudo das mulheres, dos povos indígenas, comunidades tradicionais e das populações periféricas. E essa ameaça não está apenas no texto do PL, mas também na forma como ele foi aprovado: silenciando, humilhando, apagando quem se opõe. Não por acaso, quem foi interrompida e desrespeitada durante a votação foram deputadas como a parlamentar negra Talíria Petrone e a deputada indígena Célia Xakriabá, defensoras da terra e da vida. Esse tipo de violência política de gênero e raça não é um desvio. É parte do projeto.

O capitalismo se apoia no patriarcado, e isso se expressa tanto nas políticas que impõe quanto na forma como se faz política. O desprezo por mulheres que denunciam a devastação da natureza é o mesmo desprezo que as transforma em subcategoria dentro do próprio parlamento. O que o capital tenta silenciar é justamente o que mais ameaça sua lógica: a defesa da vida, do cuidado, do comum, daquilo que não cabe na planilha.

A deputada Célia Xakriabá, ao tentar denunciar os impactos do PL sobre os territórios indígenas, foi tratada com desdém, ridicularizada, ignorada, não por acaso. Essa violência tem alvo e tem método. Ela se repete, como relatou a deputada Talíria Petrone, que também teve sua fala interrompida e lembrou que, em sete anos de Congresso, já foi alvo de ameaças de morte, teve microfones desligados, foi vítima de chacotas sobre sua aparência e silenciada sistematicamente. O ataque a Célia não é um caso isolado, mas parte de uma engrenagem mais ampla: silenciar mulheres racializadas que ousam denunciar os impactos do capital sobre seus corpos e territórios.

A deputada fez questão de afirmar que essas parlamentares não estão ali para ocupar o lugar de vítimas. São fazedoras de política, articuladoras de resistência, lideranças legítimas que seguem abrindo caminhos para outras, como Benedita da Silva fez antes. Como ela expressou após o episódio, não basta tolerarem suas presenças no Congresso é preciso reconhecer a legitimidade e a centralidade de vozes pretas, indígenas e populares. Essa presença incomoda porque apresenta um outro projeto de país: mais justo, mais plural, mais comprometido com a vida. E essa presença é política, é organizada e é inegociável.

O PL 2159/2021 facilita o avanço de obras e atividades de grande impacto ambiental sem necessidade de licenciamento prévio. Isso significa, na prática, abrir caminho para mais barragens, portos, hidrelétricas, estradas e empreendimentos de mineração e agropecuária em áreas ambientalmente sensíveis, inclusive em terras indígenas. Significa também mais desmatamento, contaminação de rios, expulsão de comunidades tradicionais e originárias, além do aumento de doenças e pobreza. É um projeto que favorece grandes grupos econômicos às custas da saúde da população e da integridade dos territórios. Esse desmonte também ameaça o papel dos órgãos técnicos e científicos, como o IBAMA e a FUNAI, esvaziando sua capacidade de fiscalização e análise crítica, o que abre espaço para a impunidade de crimes ambientais e o avanço do desmatamento.

Casos como os crimes socioambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos causados por rompimentos de barragens da mineradora Vale, ilustram com brutalidade o que está em jogo: centenas de vidas perdidas, ecossistemas destruídos, comunidades inteiras soterradas e até hoje sem justiça. Mais recentemente, há dois anos, o desastre provocado pela Braskem em Maceió, com o colapso do solo causado por décadas de mineração de sal-gema, obrigou o deslocamento de mais de 60 mil pessoas e devastou cinco bairros inteiros da capital alagoana. O silêncio e a omissão do poder público diante dessas tragédias evidenciam como o lucro de poucos continua acima da vida de milhares. O PL da Devastação escancara as portas para que tragédias como essas se tornem regra, e não exceção.

Para as mulheres, os efeitos desse tipo de projeto são ainda mais perversos. Em todas essas tragédias são elas, sobretudo as negras, periféricas e indígenas, que mais carregam o peso cotidiano da reconstrução: buscam água limpa, garantem comida, acolhem o luto e refazem os laços comunitários desfeitos. Sustentam o trabalho do cuidado e da reprodução da vida mesmo quando o Estado se ausenta, ou pior, quando se torna agente de destruição. São as mulheres indígenas biomas vivos, em profunda conexão e preservação de suas culturas e de seus saberes ancestrais, a força vital dos territórios onde resistem. Esse sistema naturaliza esse trabalho invisível e essencial, exigindo que sigam alimentando, cuidando de idosos, crianças e doentes, mesmo sem acesso à infraestrutura básica. Essa rede silenciosa amortece os choques da destruição ambiental e mantém o funcionamento da lógica do capital, que não arca com os danos que produz. Quando há contaminação, escassez ou deslocamento forçado, é sobre elas que recai o esforço de resistir, proteger e reconstruir em meio à violência, à insegurança e à exploração.

Isso vale para as favelas atingidas por obras mal planejadas, para os quilombos pressionados por empreendimentos, para as indígenas que veem suas terras e suas existências serem invadidas e suas culturas ameaçadas. A economia do cuidado, desempenhada majoritariamente por mulheres, sustenta silenciosamente os escombros deixados por esse modelo destrutivo. Elas enfrentam a tripla jornada de cuidar, resistir e reconstruir, em contextos cada vez mais precarizados.

O PL da Devastação, ao desobrigar o Estado de realizar estudos de impacto ambiental antes de liberar grandes obras, ataca diretamente os mecanismos de proteção conquistados com luta. E faz isso num contexto em que o discurso antiambiental e anticientífico tem ganhado força, aliado a uma masculinidade autoritária, que despreza o cuidado, a escuta, a vida. É preciso dizer com todas as letras: esse tipo de política é incompatível com um projeto de vida. É incompatível com a justiça ambiental, com a democracia real, com qualquer horizonte que coloque o bem-viver coletivo acima do lucro.

As mulheres organizadas vêm há tempos denunciando essa falsa separação entre o que é “ambiental” e o que é “social”. Não há como defender a vida sem enfrentar o modelo econômico que a destrói. E não há justiça ambiental e climática sem justiça de gênero. O mesmo sistema que violenta a natureza é o que silencia mulheres, expropria territórios e lucra com a precariedade da vida alheia. Por isso, nossa luta contra o PL da Devastação é também uma luta contra o machismo, o racismo ambiental, a lógica colonial que transforma a terra e os corpos em mercadoria.

Não nos calaremos. Seguiremos em marcha por justiça climática, por soberania alimentar, por territórios livres e por uma democracia onde todas as vozes possam ecoar, inclusive no plenário. O silenciamento de Célia e Talíria no Congresso não é um episódio isolado, é a extensão institucional da violência que atinge diariamente as mulheres que vivem nas zonas de sacrifício ambiental. O PL da Devastação, ao permitir a destruição sem controle, fere duplamente as mulheres: as que denunciam e as que resistem em seus territórios.

Reafirmamos: a terra, o corpo e a palavra não são mercadoria. Não seremos silenciadas nem removidas. Onde eles constroem destruição, nós organizamos luta.


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