Socialismo do Século XXI – consigna ou lugar comum?

Imagem de fundo vermelho com os texto em azul claro: Coluna subversiva - Socialismo do Século XXI - consigna ou lugar comum?

Por Carlos Bittencourt Doutor em Ciências Sociais e militante do Subverta PSOL

Tudo no século XXI é “do século XXI”. A tautologia inicial busca ir além do trivial. Foi o século XX que produziu essa espécie de fetiche com o “século XXI”. Um certo fatalismo progressista, no qual as coisas sempre melhoram. Olhemos à volta e vejamos as capacidades autodestrutivas que o capitalismo foi capaz de criar nos últimos 25 anos! Os monumentos da civilização, de fato, estão prenhes de barbárie. O avançar do relógio, dos calendários, não marca o avançar da História. O amanhã pode ser bem pior que o ontem. Daí a ideia do Walter Benjamin de que a revolução não é a tomada de controle da locomotiva, mas o puxão do freio de emergência.

Isso não é dito, assim de abertura, para a criar impacto estético. Isso é um elemento chave na curva da história na qual nos encontramos. Pois a construção deste fetiche do evolucionismo histórico é um empecilho para o avanço real do socialismo no século XXI. A última pincelada ideológica nesse progressismo veio do que se convencionou chamar de abordagem pós-moderna, uma espécie de inovacionismo sem fim, no qual a dinâmica das modas ganharam enganche cultural; na qual se buscou impor o fluxo ao fixo, o micro ao macro, o novo ao velho… supostamente, em nome da uma maior complexidade, mas na prática inoperalizando a dialética entre estes e outros contrários. Absolutizaram o relativismo e colheram negacionismo científico, movimentos antivacina e reabilitação nazi.

Por isso, o socialismo do século XXI não é uma espécie de socialismo dos Jetsons. Não vira as costas para as tradições, sabe que todo futuro repousa sobre uma história e, portanto, ao mesmo tempo que cria, recria. Ao mesmo tempo que inova, reabilita. Tampouco é apenas decalque, repetição de experiências e perspectivas. O que faz valer esse “título”, de XXI, vem justamente da forma crítica com que este socialismo lida com os erros e limitações das formas passadas. Parece contraditório, mas não é. Trata-se, justamente, da dialética difícil entre o peso das determinações das coisas como elas são (e toda história que levou pra chegarem até aqui) e a possibilidade de um futuro transformado e vice e versa.

Capitalismo tardíssimo e novo socialismo

O socialismo do século XXI nascerá, ou não, do capitalismo do século XXI. E que capitalismo é esse? Passados 80 anos, ainda é necessário dizer que trata-se, em muitas dimensões, do capitalismo do pós-guerra. Trata-se do Capitalismo Tardio. No entanto, Ernest Mandel errou sua previsão sobre a capacidade que aquele capitalismo teria de sobreviver à crise dos anos 1960, que ele apontava como o ciclo de queda dentro da quarta grande onda de desenvolvimento capitalista. Havia a expectativa que essa fase da crise se desdobraria em um processo que combinaria estagnação econômica e explosões revolucionárias, abrindo uma nova etapa para o avanço do socialismo. Como sabemos, houve estagnação, houve crescente de movimentos revolucionários, mas o capitalismo não sucumbiu e nem estagnou.

Abriu-se, portanto, o que nos termos de Mandel seria uma nova onda, a quinta. Apesar de suas inovações: fim do padrão dólar-ouro, financeirização radical, desregulamentação econômica internacional, surto tecnológico… essa nova onda – expansiva até 2008-2009 e depressiva até os dias atuais – estressou, ainda mais, as características deste capitalismo tardio. Intensificou os aspectos que Mandel apontava como constitutivos deste: revolução tecnológica permanente associada ao complexo militar-industrial; crescimento das corporações multinacionais e globalização econômica; consumo de massa e expansão do crédito; intensificação das contradições entre forças produtivas e relações de produção; superprodução crônica, redução dos empregos industriais; ruptura do equilíbrio ecológico… apesar dos erros de previsão histórica, o conceito de capitalismo tardio segue útil e explicativo.

Mas há indícios de que esse capitalismo do pós-guerra se encontra em seus estertores. Há um processo de convergência de crises e caos geopolítico que ameaçam o capitalismo como o conhecemos. A reorientação geostratégica dos EUA, a imponência do capitalismo chinês, o umbral do colapso ecológico/climático e a iminência de uma nova guerra total, apontam para alguns tipos de “dia seguinte” que ainda não é possível prever qual será, mas ao que tudo indica significará uma reconfiguração profunda do que temos hoje. Tão banalizada, a síntese de Gramsci parece, finalmente, reassumir sua atualidade:

A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer: nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece.” Gramsci (Caderno 3, escrito entre 1930 e 1932)

É preciso dizer também que esse capitalismo tardíssimo traz no interior de suas contradições aspectos que apontam para fora dele. Seja no sentido de sua própria insustentabilidade, de seus aspectos autodestrutivos. Seja no sentido das capacidades que ele cria, tanto no que diz respeito à centralização e à globalização das cadeias produtivas, quanto ao desenvolvimento tecnológico substituidor de trabalho vivo. A centralização e a globalização podem permitir uma substituição mais simples das cadeias de comando privadas pelo controle público, a globalização permitiria, sob controle democrático, uma concertação geoeconômica e geopolítica com capacidade de pôr fim à pobreza e as iniquidades, controlar as emissões de efeito estufa, em nível global, e ainda estabelecer as bases para uma paz duradoura e sustentável. Já o alto grau de desenvolvimento tecnológico, inclusive os recentes avanços da Inteligência Artificial, podem criar a possibilidade de todos trabalharem, pouco. “Fazer hoje uma coisa, amanhã outra, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição”…

Tudo indica que as disputas pelo “dia seguinte” desse mundo atual vão se acirrar mais e mais nos próximos anos. O fascismo de um lado, o liberalismo de outro (quando não se aliarem aos fascistas), o capitalismo planificado chinês em um terceiro pólo em diálogo com os sociais-democratas e, quem sabe, o socialismo do século XXI, em outro. De todos esses pólos, o último é, sem dúvidas, o mais débil, apesar de guardar em si grandes possibilidades. Então é preciso correr e recorrer a tudo que temos em mãos para tornar esta opção real para o futuro da humanidade.

O poder da criação 

O fim da URSS é um aspecto constitutivo da quinta onda do capitalismo e isso, de certa forma, reabilita o esforço de Mandel de juntar os elementos estritamente econômicos com os aspectos extra econômicos, qual seja, juntar Kondratiev com Trotsky. A universalização capitalista atingiu êxito inaudito, tanto objetivamente quanto subjetivamente. O fato da própria China comunista ter aderido ao modelo de desenvolvimento capitalista, mesmo que sob a fórmula da planificação, é uma prova desse avanço objetivo. O predomínio subjetivo, então, foi ainda mais profundo semeando tanto conformismo, quanto fatalismo, tanto anticomunismo, quanto individualismo.

A gaiola do realismo aprisionou a maior parte da esquerda, alastrando conformismo. Outra parte, ao tentar fugir da gaiola, alçaram um voo de Ícaro, no sectarismo e no maximalismo. Vítimas de um período de poucas margens, objetivas e subjetivas. Estamos no limiar de um novo tempo, é preciso ir além. Como então apresentar uma visão, um projeto, um horizonte que tenha força mobilizadora, capacidade realizadora e potencial disruptivo? É preciso reconhecer que partimos de um patamar baixo nesses três aspectos, tanto em nível nacional quanto internacional, mas essa é a situação no século XXI, infelizmente. 

E o que é socialismo?

Talvez começar respondendo à pergunta elementar seja um passo importante, começar do começo. 

Em primeiro lugar, o socialismo não é o capitalismo. Por conseguinte, a China não vive o socialismo do século XXI, como sugere Elias Jabour. Houve resistência, mas Deng Xiaoping impôs seu programa e sua aliança com Richard Nixon foi fundamental para isso. Nada disso oblitera o papel que a China pode cumprir no caminho de uma nova ordem internacional, se não se deixar dominar inteiramente pela sociabilidade do lucro e, em consequência, pela escalada da guerra inter-imperialista. A China é uma economia capitalista planificada, sob direção do Estado Chinês, hegemonizado pelo Partido Comunista. Capitalismo de Estado é uma definição menos correligionária do que socialismo com características chinesas.

Deriva-se desse primeiro ponto que o socialismo é anticapitalista. Que ele compreende que o modo de vida capitalista, regido pela dinâmica da acumulação de grana na mão de um punhado de bilionários devasta a humanidade, arrasa o planeta, impõe hierarquias entre classes, entre hemisférios, entre povos, entre gêneros e orientações sexuais. Um modo de reprodução social, de produção econômica que domina o modo de vida de dezenas de gerações. Originado na espoliação das terras, dos metais, dos instrumentos de trabalho, que criou, pela primeira vez na história, uma massa de despossuídos sem nada a oferecer a não ser seus próprios corpos, sua capacidade de trabalhar para outro no chamado mercado de trabalho ou servir para outro no caso das formas de apropriação não pagas dos trabalhos, como é o caso da economia do cuidado.

Diga-se de forma mais direta: os socialistas lutam pela substituição do modo de vida capitalista pelo modo de vida socialista. O socialismo é uma alternativa societal, não apenas uma coloração política disposta a conviver, até que a morte os separe, com o capitalismo. Controle público sobre o fundo público, distributivismo e ampliação do comum. “Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”. O socialismo do século XXI socializa: riqueza, saberes, técnica e poder e se orienta pra acabar com a forma lucro como o rotor do desenvolvimento das forças produtivas.

O segundo aspecto é que apesar dele ter se tornado uma força extremamente minoritária do ponto de vista político e geopolítico, ele tem pretensão estratégica, ou seja, ele almeja caminhos concretos para sua realização. Não virá de mão beijada, precisa de combate. Ele não é um sonho, ele é um projeto. E, portanto, parte necessariamente das condições concretas de cada país e região. Mas almeja universalização e por isso parte por apresentar soluções para as mais diferentes contradições, às vezes paradoxos, que o capitalismo impinge à 99% da humanidade. Uma pessoa roubada nunca se engana, quase diria o poeta pernambucano. 

O sujeito revolucionário do século XXI

A universalização do capitalismo permitiu a universalização do anticapitalismo. A desigualdade sem precedentes que vivenciamos hoje, confirma o prognóstico de Marx acerca da “simplificação” do antagonismo de classe conforme o desenvolvimento capitalista.

Seja no Manifesto Comunista:

“cada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes que se enfrentam diretamente”

Seja nO Capital:

“A acumulação de riqueza numa extremidade é, portanto, ao mesmo tempo acumulação de miséria, de tormento do trabalho, de escravidão, de ignorância, de brutalização e de degradação moral na extremidade oposta”

A luta de classes, então, se dá em todos os campos e é permeada por muitas dimensões. Nosso desejo de universalização deve buscar convergências nesta diversidade, unidade. A questão do sujeito revolucionário é, então, o ponto de partida. Apesar de incontáveis detratores, este esteio do pensamento marxista seguiu incólume: a luta de classes. Vivemos numa sociedade de classes possuidoras de meios de produção e classes despossuídas dos mesmos. Nós somos os 99%! O nível de concentração e centralização do capital de um lado e de empobrecimento das maiorias sociais, fazem do século XXI o mais desigual da história. A soberba de um Luís XIV perto do alcance do domínio dos novos imperadores é pueril. E, certamente, o fazer-se da classe revolucionária do século XXI ocorrerá na luta contra esse domínio, fazendo que o destino dos dominadores de agora rememore o destino dos herdeiros de Luís XIV. 

Isso é central! A luta é para despossuir os possuidores e dominar os dominadores. Quais são as identidades culturais, sociais, econômicas, territoriais de dominados e dominadores? Mesmo com toda a gosma intelectual pós-moderna que tentou fagocitar a crítica emancipatória, tornou-se muito difícil não ver um mundo dividido. E a fraternidade, o desejo de paz e bem viver que movem o socialismo do século XXI, não o impedirá de nutrir ódio de classe contra os possuidores e dominadores. É nessa chave que superamos a Derrota da Dialética que compreende o aspecto econômico da classe como subordinativo dos demais aspectos (raça, gênero, orientação sexual…), quando, na realidade, eles são constitutivos da classe, são a classe dos despossuídos e dominados. Portanto, o socialismo do século XXI é classista, feminista, anti-racista, anti-colonial. 

Alguns pressupostos

Outro aspecto que se acentuou foi a internacionalização do capital e a interconexão global. Isso também reabilita um aspecto fundacional da luta de classes, ela é internacional. Favela é favela em qualquer canto! O internacionalismo, portanto, é, mais do que nunca, aspecto constitutivo do socialismo do século XXI. As lutas nacionais certamente conformam uma dimensão imediata das mobilizações anticapitalistas e por isso requerem táticas e estratégias adequadas ao contexto e que dialoguem, inclusive, com algum grau de nacionalismo. Isso, no entanto, nunca se sobrepõe à solidariedade entre as lutas emancipatórias em todas as partes do mundo e à compreensão de que a luta dos despossuídos é internacionalmente interligada. 

Isso se desdobra em outra dimensão estratégica: os socialistas do século XXI declaram “guerra à guerra”, assim como aqueles que no início do século XX prenunciavam no Manifesto da Basileia, em 1912. A ruína da ordem mundial do pós-guerra é a ruína da paz do pós-guerra. O avanço da acumulação de capital produzida pela era neoliberal redundou em algo não muito diferente daquele que levou às duas grandes guerras, ou seja, IMPERIALISMOS. A noção de capital-imperialismo sustentada por Virgínia Fontes parece encaixar como uma luva para a interpretação da crise inter imperialista que vivemos. Supera reforçando a abordagem de Lenin. Não subestimar estes aprendizados é compreender que a guerra mundial é uma das variantes possíveis no cenário, e bota possível nisso. O pacifismo revolucionário assume um papel chave em tudo isso, deve integrar como um aspecto central em nossos programas e lutas nacionais, como um elemento de convencimento das massas despossuídas (que são quem ao final morrem nas guerras) da necessidade do combate pelo socialismo.

O socialismo do século XXI é democrático. A democratização é, de fato, um valor universal. Trabalhando por ela, despojamos os dominadores de seus domínios. Se a decisão é pública e coletiva, cria-se salvaguardas para o que é comum. Ao nos confrontar ao capitalismo apresentando uma alternativa a ele, propomos uma solução muito mais efetiva e transparente de democracia do que a democracia liberal burguesa pode alcançar. O socialismo do século XXI oferece uma solução de regime, democracia direta, ativa, participativa, descentralizada. A democratização é parte da luta anticapitalista e na quadra histórica que vivemos tem papel estratégico na luta contra o fascismo. Devemos apresentar a democracia socialista como alternativa à crise da democracia liberal. 

Mas a democracia não se resume ao regime, a democracia pressupõe planejamento, planificação. Esse é um aspecto chave do socialismo do século XXI. Ele parte da compreensão de que o planeta é finito, a matéria e a energia são finitos, a riqueza, portanto, também é. Todo excedente socialmente produzido deve ser socialmente distribuído e o planejamento democrático socialista é a forma que devemos construir para realizá-lo.

Isso também deriva da compreensão de que o capitalismo é uma falha metabólica na relação sociedade e natureza, fundada pelo próprio Marx. A lógica incessantemente expansiva da acumulação de capital colapsa os suportes de vida do planeta. Destrói em uma velocidade muito superior àquela que as fontes da vida podem se regenerar. O grande salto dado pelo capitalismo tardio acelerou ainda mais essas tendências autodestrutivas e hoje já colocam efeitos colaterais irreversíveis em nosso horizonte. Por isso, a perspectiva ecológica é vital tanto na mobilização anticapitalista atual, quanto na construção de um caminho de futuro possível para a humanidade. Por isso, um bom nome para o socialismo do século XXI é: ecossocialismo.

Consigna ou lugar comum?

Não há porque fugir da consigna “socialismo do século XXI”. Porque não abandonamos a ideia de realizar o socialismo ainda neste século. Mais do que isso, porque o capitalismo do século XXI e as experiências socialistas do século passado gestam possibilidades de uma nova era socialista. Temos que preenchê-lo de conteúdo histórico, de revoluções. Não tratá-lo como dogma ou como doutrina, mas como guia para ação. A toupeira pode botar a cabeça pra fora da história nas mais diferentes circunstâncias e lugares. Estejamos prontos! Não abandonemos este horizonte, sem ele seguiremos abandonados, vagando sem perspectiva. Precisamos oferecer essa alternativa para a humanidade.

É preciso conectar os dominadores e possuidores de hoje como os herdeiros daqueles que nos escravizaram no passado. É preciso apontar o dedo para os proprietário dos meios de produção e seus asseclas e unir o outro lado com tudo quanto é conflito que eles nos impõe. O conformismo e o relativismo foram deveras deletérios para a subjetividade das classes subalternizadas. É preciso uma estratégia de combate, não há tempo de espera pelos consensos. Repito as palavras de Walter Benjamin:

a social‑democracia cortou o tendão da melhor força. Nessa escola a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quanto a vontade de sacrifício. Pois ambos se nutrem da visão dos ancestrais escravizados, e não do ideal dos descendentes libertos.”

Com essa disposição de luta e crença numa ética solidária, emancipatória, cooperativa que a humanidade pode desenvolver. No contraste entre as vastas condições materiais adquiridas e as mais bárbaras escassezes, emergem as alternativas. As tempestades extremas não são “apenas” as climáticas, serão bélicas, econômicas… Fim da História é o caraleo, a História voltou! A próxima década vivenciará transformações inauditas. A crise não é conjuntural, é sistêmica! Poderá significar um mergulho violento numa ressurreição capitalista tardia – certamente com um papel destacado do fascismo -, ou conseguimos puxar o freio de emergência. O socialismo ainda é o nome do que falta. Viva o socialismo do século XXI, nós te criaremos!


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