Entre implementação e poder popular. Balanço do subverta sobre a COP30.
Nunca houve uma COP como a de Belém e, ao mesmo tempo, infelizmente houve muitas como ela. Pela primeira vez, uma Conferência do Clima aconteceu na Amazônia, reunindo quase 3 mil delegados indígenas e ampliando de forma inédita a participação de povos diretamente impactados pelas mudanças climáticas. A Marcha Global pelo Clima levou mais de 70 mil pessoas às ruas de Belém, consolidando a força das mobilizações socioambientais no país. A Cúpula dos Povos, que reuniu 1,1 mil organizações e mais de 25 mil ativistas de 60 países, encerrou suas atividades com a entrega de uma declaração coletiva à presidência da conferência, em uma tentativa de influenciar as negociações oficiais e reforçar demandas históricas por justiça climática e territorial.
A COP30 marcou a retomada da presença popular após três anos de conferências realizadas em países autoritários. A escolha de Belém aproximou a COP dos povos amazônicos e das comunidades diretamente afetadas, com efeitos simbólicos e práticos. A cidade se tornou palco não só das reuniões oficiais, mas de uma agenda paralela vibrante: debates, atos e mobilizações que transformaram Belém na capital da resistência ao agronegócio, à mineração e à violência territorial. Entre esses espaços, além da Cúpula dos Povos, também estiveram a Aldeia COP, que recebeu milhares de indígenas; o Espaço Chico Mendes, com intensa programação de 15 dias; o Comitê COP30, que articulou incidência e participação social; o II Encontro Ecossocialista Latino-americano e Caribenho e o IV Encontro Internacional dos Atingidos por Barragens e pela Crise Climática.
Povos indígenas, quilombolas, juventudes, movimentos urbanos, ribeirinhos, comunidades pesqueiras, camponeses e trabalhadores demonstraram que a luta real por clima não cabe no cercadinho da Zona Azul e recolocaram no centro demandas como a demarcação de terras, a proteção dos rios e o fim da exploração fóssil na Amazônia. As mobilizações reafirmaram que as soluções de base já existem e que as comunidades exigem participação efetiva nas decisões sobre seus territórios. Ao mesmo tempo, expuseram tensões entre as demandas dos movimentos por ruptura com modelos exploratórios, e a persistência das negociações oficiais em mecanismos de mercado que não enfrentam as causas estruturais da crise climática.
É neste contexto que Belém também expôs a repetição do velho roteiro, com retrocessos, bloqueios e o predomínio dos interesses fósseis e corporativos sobre a urgência climática. O documento final foi incapaz de alcançar até mesmo consensos mínimos.
A COP28 foi a primeira a reconhecer a necessidade de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis, um marco tardio, mas ainda assim histórico. Em Belém, Lula retomou essa direção já na Cúpula dos Líderes e em discursos posteriores, defendendo que um roteiro para o fim dos fósseis seja finalmente transformado em uma decisão global. Apesar disso, ficou de fora o chamado “mapa do caminho” para a eliminação dos combustíveis fósseis e do desmatamento, resultado da força dos países produtores de petróleo e da captura da agenda por aqueles que lucram cavando o colapso. Neste cenário é importante fazer uma ponderação, pois é melhor não aprovar um roteiro frágil, sem mecanismos, responsáveis definidos ou debate político suficiente entre os países, do que aceitar uma peça simbólica que serviria apenas como distração, usada para simular avanço onde não há. Assim, a coalizão de mais de 80 países pelo fim dos fósseis e o encontro convocado para abril na Colômbia despontam como iniciativas que podem empurrar o debate para fora da paralisia da UNFCCC, articulando alianças internacionais e movimentos que se recusam a aceitar o negacionismo do consenso.
A chamada “Decisão Mutirão”, proposta brasileira para incluir temas urgentes, também naufragou. Sem acordo possível, a presidência da COP admitiu que não conseguiu conter o bloqueio liderado por Arábia Saudita, Índia e seus aliados. Ao final, restou apenas a promessa de que o Brasil criará dois mapas, um para a transição dos fósseis e outro para frear o desmatamento, em um processo paralelo, fora do compromisso formal das Partes. Como disse Marina Silva, “sonhávamos com muito mais”.
Belém escancarou os limites de um sistema da UNFCCC, incapaz de dar conta da urgência climática. As regras de consenso permitem que poucos países bloqueiem avanços globais, enquanto corporações e produtores fósseis capturam o processo por dentro. A incapacidade de aprovar um roteiro para o fim dos combustíveis fósseis (ou sequer citar combustíveis fósseis nos textos), não é uma falha circunstancial, é sintoma de uma estrutura que privilegia interesses econômicos e sabota qualquer ambição real. Por isso, cresce entre movimentos e pesquisadores a defesa de uma reforma profunda do regime climático, capaz de limitar o poder de veto dos Estados-petroleiros, expulsar lobistas fósseis e dar centralidade à ciência e aos povos.
A COP30 ocorreu em um mundo atravessado por guerras, disputas geopolíticas e pelo avanço da extrema direita global, que resgata o negacionismo climático como arma política, dificultando negociações e bloqueando investimentos urgentes. O genocídio em curso contra o povo palestino, transmitido ao vivo para o mundo, evidenciou como a ordem internacional segue orientada pela lógica da violência, do colonialismo e da militarização, drenando recursos que deveriam estar voltados à proteção da vida e dos territórios. A ausência de Trump marcou o cenário, reforçando a influência global desse projeto reacionário que pressiona governos a retroceder em compromissos climáticos. Foi nesse ambiente que a fala de Lula na Cúpula dos Líderes: “é mais barato financiar o clima do que financiar guerras”, sintetizou uma crítica certeira a uma ordem internacional que prioriza conflito e poder militar, não a proteção da vida. Para os movimentos e organizações que lutam por justiça climática, a mensagem é clara, recursos existem, falta decisão política para direcioná-los ao que realmente importa.
A presença massiva de corporações e consultorias privadas, com forte representação do setor fóssil e de grupos que promovem instrumentos de mercado (créditos de carbono, private finance, conservation finance), demonstra o grau do entrave. Monitoramentos registraram mais de 1.600 credenciados ligados ao setor fóssil, número recorde e superior ao de várias delegações nacionais. Essa presença, longe de detalhe técnico, funciona como força política que orienta agendas e enfraquece demandas de justiça climática. Os documentos evidenciaram a distância entre expectativas populares e o conteúdo das negociações, frequentemente centradas em créditos e parcerias público-privadas insuficientes. A pressão ampliou vozes e agendas tradicionais, mas esbarrou nas assimetrias de poder que moldam o processo.
Ainda assim, houve conquistas importantes que precisam ser reconhecidas e defendidas. Pela primeira vez, os direitos territoriais e os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas aparecem como elementos estruturantes no enfrentamento à crise climática. O documento final reforça o direito ao consentimento livre, prévio e informado, uma vitória diante de décadas de silenciamento. Nesse contexto, o governo Lula, por meio da ministra Sonia Guajajara, anunciou durante a COP o reconhecimento de quatro Terras Indígenas (no Pará, Amazonas e Mato Grosso) e a demarcação de outras dez (nos estados do Pará, Amazonas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Paraná e São Paulo). Um avanço que só ocorreu pela forte pressão popular, mostrando que mobilização e ocupação política, com bloqueios, marchas e diálogo direto com autoridades, conseguem forçar recuos e gestos concretos do Estado.
Também pela primeira vez, populações afrodescendentes foram nomeadas nos textos da UNFCCC, abrindo caminho para políticas mais justas e enraizadas nos territórios. É um avanço simbólico e político, que evidencia, ao mesmo tempo, o nível de colonialidade ainda dominante no regime climático.
Uma frente importante foi o lançamento da Força-Tarefa Oceânica e o compromisso de diversos países em atualizar suas NDCs para incluir soluções “azuis”. O chamado “Pacote Azul” apresentou caminhos capazes de reduzir emissões em larga escala, enquanto novas ferramentas de monitoramento buscarão garantir transparência. Somou-se a isso o impulso político para a ratificação do Tratado BBNJ, essencial para proteger a biodiversidade em águas internacionais e ampliar a governança dos oceanos.
Outro avanço em nível nacional foi a adoção do Marco de Sistemas Alimentares e Clima, que reconhece a agricultura familiar, a agroecologia e os conhecimentos tradicionais como caminhos estratégicos para enfrentar a crise climática. Pela primeira vez, princípios como o direito humano à alimentação e a transição agroecológica entram de forma estruturada na agenda climática do país. No entanto, o Marco não é vinculante e ainda depende de regulamentação. Somado à forte presença da agroindústria e à ausência de metas para reduzir emissões da agricultura industrial, o resultado é que práticas ancestrais ganham visibilidade, mas continuam sem o respaldo político necessário para orientar a transformação que o clima exige.
A aprovação do Mecanismo para Transição Justa para Cooperação, Capacitação e Assistência Técnica Internacional (BAM), a adoção dos indicadores globais de adaptação e o novo plano de ação de gênero também foram vitórias conquistadas pela sociedade civil, ainda que com limites e ausência de metas concretas. São vitórias pontuais e insuficientes diante da gravidade do cenário. Não há compromissos claros de financiamento robusto e acessível para essas medidas, e a agenda da “responsabilidade dos países ricos” segue emperrada, em grande parte por pressão da União Europeia e aliados.
No campo da adaptação, o avanço foi frágil. Os indicadores aprovados, reduzidos a 59, foram amplamente criticados como imprecisos e insuficientes, enquanto a ciência alerta que, mesmo que zerássemos as emissões hoje, os eventos extremos seguirão se intensificando nas próximas décadas. Portanto, a urgência é evidente para povos indígenas, comunidades tradicionais e periferias urbanas que já vivem o colapso no cotidiano. Ainda assim, a adaptação não recebeu compromissos claros de financiamento público e direto. Sem uma estrutura financeira estável e democrática, o tema corre o risco de permanecer no discurso.
Já o lançamento do Tropical Forests Forever Facility – TFFF gerou preocupação entre movimentos e lideranças indígenas. O programa repete vícios de soluções financeiras anteriores ao misturar capital privado, expectativa de retorno e pagamentos por conservação, abrindo espaço para financeirização das florestas. Por isso tantas organizações afirmam que transforma proteção em commodity e retira autonomia dos povos da floresta. Além disso, os fundos climáticos seguem sob controle do Banco Mundial, cujas condicionalidades dificultam o acesso dos territórios mais vulneráveis. Sem enfrentar essa lógica, promessas de bilhões não se traduzem em ações.
O contraste entre o Fundo anunciado na COP29, de cerca de 300 bilhões de dólares, e a necessidade estimada de pelo menos 1,3 trilhão anuais evidencia o tamanho da lacuna. Nesse sentido, um avanço foi o lançamento do Acelerador Global de Implementação, processo que estabelece dois anos para fechar esse déficit. No entanto, se queremos uma agenda climática justa, é necessária uma reforma estrutural da arquitetura financeira, com transparência, gestão democrática e recursos em forma de doação. O Brasil deveria liderar esse debate, defendendo um modelo que não reproduza desigualdades coloniais e coloque a vida no centro.
Mas a distância entre discurso e prática também aparece dentro de casa. Enquanto a COP apresentava narrativas de proteção da Amazônia, medidas administrativas e anúncios de projetos de petróleo e mineração expuseram contradições. Autorizações de exploração de petróleo na Foz do Amazonas, planos de hidrovias em programas de privatização, a presença da Agri Zone e a atuação de empresas como Hydro e Imerys evidenciaram que o modelo de desenvolvimento adotado ainda convive com exploração e concessão de rios e territórios. A articulação entre políticas de Estado, interesses privados e infraestrutura revela os riscos à integridade amazônica e aos demais biomas.
Para ser, de fato, a COP da implementação, Belém precisaria avançar em eixos como metas claras de eliminação dos combustíveis fósseis, indicadores e mecanismos concretos de adaptação com financiamento adequado, fortalecimento de instrumentos e novas fontes de recursos para perdas e danos, e criação de mecanismos robustos de responsabilização climática.
No balanço geral, organizações socioambientais sintetizaram que a COP deixa “um fio de esperança, mas muito mais decepção”. E, de fato, é preciso honestidade política. Não chegamos nem perto de responder ao tamanho do buraco das NDCs, nem da lacuna colossal de financiamento, nem da urgência científica. Sem um mapa do caminho global e sem compromisso vinculante, estamos trilhando uma rota que nos leva perigosamente ao aquecimento de 2°C, limite que coloca milhões de vidas e territórios numa espiral de perda e devastação.
Mas o que também fica evidente é que, diante da insuficiência institucional, são as lutas fora da COP que seguem movendo as fronteiras do possível. Vale lembrar que a nossa luta não começa na COP e não termina nela. Um exemplo disso foi a ocupação da Seduc por indígenas e professoras em Belém, no dia 14 de janeiro, quando a vida rompeu o protocolo e obrigou o governo a recuar. E ela segue para além do dia 21 de novembro, no trabalho cotidiano dos movimentos, coletivos e territórios que fazem o enfrentamento real ao colapso climático.
Como organização ecossocialista, afirmamos que não nutrimos ilusões sobre o espaço formal. A COP segue capturada pela lógica corporativa e pelo capitalismo verde, sem qualquer sinal de ruptura com o modelo de desenvolvimento que produz a própria crise.
Politicamente, é preciso disputar mais do que políticas públicas, é preciso disputar a própria ideia de desenvolvimento. Isso exige romper com o produtivismo, questionar a crença tecnocrática de que a crise ecológica e climática será resolvida pelas mesmas lógicas que a produziram e defender um projeto orientado pelo bem viver, pela reprodução social da vida, por modos comunitários e planejamento democrático em escala global. Nesse caminho, é fundamental denunciar a exploração do petróleo e de outros combustíveis fósseis como pilares de um modelo energético insustentável que aprofunda a emergência climática e reproduz a dependência estrutural das economias periféricas, cuja produção é largamente exportada para sustentar o centro do sistema. Mesmo sob regimes de nacionalização, a dependência fóssil mantém o país atrelado a recursos finitos, intensivos em emissões e politicamente vulneráveis.
Nossa tarefa estratégica, portanto, é avançar em medidas táticas de transição ecológica que gerem ganhos reais, imediatos e acumulativos, ganhos que ampliem o tempo histórico, fortaleçam capacidades organizativas e construam base material para disputar, no horizonte, uma grande transição ecossocialista. Isso envolve promover políticas que reduzam emissões e desigualdades agora, fortaleçam territórios e bens comuns, ampliem o poder popular e desmontem a dependência de combustíveis fósseis e de mercados capturados, acumulando força social para mudanças estruturais.
Essa construção só é possível com a centralidade dos sujeitos que historicamente movem as transformações. Os trabalhadores, pessoas negras, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, mulheres, pessoas LGBTQIA+, juventudes e populações vulnerabilizadas. Aqueles que já vivem na linha de frente da crise e sustentam as experiências mais consistentes de resistência e reinvenção do mundo. São eles que acumulam a força necessária para impulsionar, desde baixo, as mudanças estruturais do futuro.
Não existe transição ecológica que seja, ao mesmo tempo, climática e justa sem disputar poder, nas ruas, nos territórios e nas instituições. Avançar exige combinar medidas táticas de efeito imediato com uma estratégia de construção de capacidade material, fortalecimento de sujeitos coletivos e disputa de hegemonia.
A COP30 deixa lições duras e urgentes. Enquanto as mesas oficiais patinam, são os territórios que seguem apontando caminhos reais para enfrentar a crise. É desse acúmulo, das lutas que cercaram Belém, das vozes que romperam o protocolo e das agendas construídas pelos povos, que precisamos partir. O desafio agora é transformar essa energia política, visível nas ruas e nos debates públicos, em capacidade duradoura de ação e incidência. Porque a transição justa não virá de consensos diplomáticos, mas da força organizada dos que mantêm a vida pulsando mesmo diante do colapso. O que Belém confirmou ao mundo é que a disputa existe e que o próximo ciclo será definido por quem conseguir transformar mobilização em poder real para mudar o rumo da história climática.
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