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Entrevista com Edgardo Lander direto da Venezuela

Leia a entrevista, realizada no dia 23 de janeiro, dia em que Juan Guaidó se autodeclarou presidente da Venezuela e contou com apoio imediato de Trump e Bolsonaro. O cenário é de uma crise política e econômica gigantesca, da qual não se pode descartar  a hipótese de derivar para uma guerra civil.

Lander é professor de Sociologia da Universidade Central da Venezuela e membro da Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição.

 

Subverta: Começo lhe perguntando sobre o dia de hoje (23/01/19). Parece que é um dia decisivo, talvez um dia histórico, dependendo do que vai passar amanhã e depois. Ocorreram muitas coisas importantes na venezuela hoje e gostaríamos de ouvir seu relato. Daqui do Brasil pudemos acompanhar os fatos principais, o chamado aos atos pela oposição, o chamado de Maduro, a autoproclamação de Guaidó e o discurso de Maduro. Como estiveram as ruas hoje? Como estão os deslocamentos do campo do chavismo?

Edgardo Lander: A primeira coisa que te diria, me parece que é uma coisa que chama muito a atenção é que… Sabe o que são os cacerolazos? Os cacerolazos são quando se usa utensílios de cozinha, panelas, para fazer barulho de protesto.

Subverta: Sabemos bem, no Brasil chamamos de panelaços.

E.L. : Então, no anos anteriores o característico era que os panelaços se dessem nos setores médios e altos da sociedade. E nos setores populares que era o centro do apoio do chavismo não haviam panelaços. Nos últimos três dias vem ocorrendo o contrário, os panelaços se deram nos setores populares que eram a base de apoio do chavismo durante todos estes anos. Foi uma coisa muito surpreendente. E foram panelaços fundamentalmente espontâneos porque não foram chamados expressamente por nenhuma grande organização. Esta é uma coisa muito particular. Que há no mundo popular consignas muito fortes como: “Não queremos CLAP (caixas de provisões), não queremos bônus, queremos a saída de Maduro”. São consignas que se repetem. Expressões populares que antes eram inconcebíveis, impossível imaginar isso.

Estamos numa situação extremadamente tensa, porque, de uma parte, o governo obviamente decidiu por defender-se, usando as forças que tem. Já até o momento se anunciaram nove mortes, em diferentes partes do país, e pode haver mais mortes durante esta noite. Mortes em manifestação, repressão policial em Caracas e em muitas partes do país. Houve um pronunciamento do Ministro da Defesa e disse que as Forças Armadas não aceitarão um governo imposto.

Estamos enfrentando uma situação muito difícil porque por um lado está um governo que é débil do ponto de vista econômico, de legitimidade, que tem um apoio popular reduzido, mas militante. Isso é importante porque mesmo num apoio reduzido se ele é ativo e militante isso faz diferença. E uma maioria do país que está profundamente descontente com Maduro. Uma oposição vinda dos partidos da direita, que vem rearticulando o que havia sido desintegrado nos últimos 10 anos, e que pela via da disputa pela Assembleia possibilitou um reagrupamento dos partidos da oposição. E, com certeza, uma intervenção muito, muito direta dos Estados Unidos. Um convocação direta com a população venezuelana para ir às ruas hoje pela saída de Maduro.

Temos então um choque de trens. E se não se chega a uma saída negociada, teremos uma situação extremadamente explosiva. E se assim ocorrer vamos viver uma situação de muita violência. Eu não tenho a expectativa de que Estados Unidos imponham uma intervenção militar, ao menos por agora, porque o efeito que vem tendo o estrangulamento da economia é muito, muito forte. Maduro no discurso dessa tarde que rompeu relações diplomáticas e políticas entre Venezuela e  Estados Unidos, mas não mencionou, em absoluto, o que passará nas relações comerciais. E as relações comerciais da Venezuela com os Estados Unidos são, para Venezuela, absolutamente fundamentais. O problema fundamentalmente tem a ver com a exploração de petróleo crú, com misturas, tecnologias para extração, etc, etc… problemas das refinarias venezuelanas… O fato é que a Venezuela se tornou muito dependente dos insumos petroleiros que vem dos EUA para poder explorar petróleo na Venezuela. Se os EUA decidir-se por fazer um boicote ao petróleo venezuelano, um boicote à indústria petroleira, as consequência podem ser muito mais graves para a Venezuela, pois a suspensão da renda petroleira para a Venezuela teria um efeito imediato e devastador sobre a indústria petroleira venezuelana. E apesar que há um redução de dois terços da produção petroleira nesses últimos anos, de toda a forma, a fonte principal de arrecadação do país segue sendo o petróleo. Então, uma paralisação da importação e exportação de produtos petroleiros isso levaria a continuar o colapso, mas de uma forma muito catastrófica, muito definitiva.

Então, entre as Forças Armadas que parecem estar  em bloco apoiando o governo e essa ameaça externa e o mal estar crescente da população ante uma situação de carências, de saúde, de medicamentos, etc. É uma situação que pode acabar de forma muito violenta.

Subverta: Mas parece que estamos às margens disso, não? Porque Maduro rompeu relações com os Estados Unidos e agora espera-se de como será na prática a forma como os EUA vão conduzir a ajuda econômica e política para que Guaidó se viabilize, não?

E.L.: Sim, é uma coisa notável que depois que Guaidó se autoproclamou presidente passaram muito poucos minutos para sair a declaração oficial de Trump reconhecendo Guaidó como presidente. Isso confirma o que dizíamos na Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição, de que tudo isso que está passando nesses dias foi uma coisa absolutamente orquestrada desde o governo dos EUA. Quando Guaidó se autoproclamou presidente, o governo dos EUA já havia redigido a comunicação em que apoiava Guaidó. Isso fica absolutamente claro porque se passaram pouquíssimos minutos entre uma coisa e outra. Com isso quero dizer que o processo está muito articulado com o governo dos EUA, não em termos genéricos, como se os EUA rechaçam Maduro, mas uma coisa muito milimétrica, muitos nos detalhes. Houve uma comunicação muito direta, acordos políticos de como seguir.

Então, os passos que deram, primeiro mobilizando as pessoas para se mobilizarem nas ruas, depois a autoproclamação de Guaidó, Maduro respondeu com a declaração de ruptura das relações diplomáticas e agora a bola está com os EUA para ver como vai reagir a isso. E na situação atual as opções estão se fechando rapidamente. E internacionalmente há um isolamento extraordinário. Na América Latina, o México saiu a público dizendo que não estava de acordo com os governos do Grupo de Lima e apontou que segue reconhecendo Maduro como presidente; a situação da União Europeia provavelmente conduza ao reconhecimento de Guaidó… Ou seja, a Venezuela se encontra em um estado de isolamento extraordinário.

Outra coisa que não ficou clara hoje foi que Maduro não disse nada sobre como reagiria, qual seria a resposta do governo ante a declaração de proclamação do presidente e o papel da Assembleia. Apenas disse que deixaria isso em mãos do Tribunal Supremo de Justiça. Minha interpretação disso é que não estavam prevendo com clareza esse movimento e ainda não têm clareza sobre se convém para o governo dissolver a Assembleia, prender representantes da Assembleia, prender Guaidó. Ou seja, essas coisas que poderíamos esperar que o governo faça como reação ao que ocorreu hoje, obviamente ainda não têm clareza, então Maduro destinou essa decisão ao Supremo Tribunal de Justiça. As coisas estão se movendo e estão se movendo muito aceleradamente.

Subverta: Até agora a oposição venezuelana teve muitos sujeitos que tentaram liderá-la. O governo derrotou alguns, outros não lograram sucesso entre seus pares… Quem é Guaidó, o presidente da Assembleia Nacional e quais são suas relações internas? Creio que não é uma unanimidade esse que se autointitula presidente agora. Quem ele representa?

E.L.: Este é um sujeito que pertence a um dos partidos da direita, um partido que se chama “Vontade Popular”. É um partido, digamos, ideologicamente liberal no sentido clássico da palavra, defende o livre-mercado, é anti-estado, etc. etc. E foi dos partidos do sistema política nacional nos últimos anos, o partido mais de direita e que mais buscou polarizar com o bolivarianismo. O que me contaram, eu não o conheço tão bem sua história, é um personagem bastante desconhecido de forma geral, é que este é um sujeito que dentro de seu partido sempre teve posições menos “direitosas” e que teria abertura para relações com outras organizações e pessoas fora desse partido.

Desde o ponto de vista da oposição, este sujeito tem uma enorme vantagem porque não esteve entre as lideranças que nos últimos anos estiveram em luta e, portanto, muita gente não o conhece muito bem, mas tampouco muita gente o odeia. Porque as brigas entre os diferentes dirigentes dos partidos da direita, nesses anos, foram muito desgastantes. E de alguma forma ele conseguiu a liderança de seu partido, colocando outras figuras em segundo plano e aparecendo como a principal liderança do momento.

Subverta: É claramente uma situação de dualidade de poderes

E.L.: É um momento muito perigoso. A profundidade da crise venezuelana é evidente, Maduro não terá condições para continuar se preservando no governo por muito tempo. E tem que existir uma possibilidade de negociação com consulta à população, como a  criação de um mecanismo que permita um plebiscito, referendo ou novas eleições. Alguma possibilidade que permita uma espécie de transição. É isso ou o cenário de violência e guerra irá crescer. O que está em jogo é se Maduro está disposto a ceder e a participar de novas eleições e perder ou prefere permanecer entrincheirado no governo.

Subverta: Existe algum isolamento de Maduro frente a outros setores do governo? Qual o nível desse isolamento? E se há alguma possibilidade de Maduro reacender a memória do chavismo e do próprio do processo do qual ele é fruto ou se isso está fora de cogitação?

E.L.: Maduro é o principal responsável pela perda da memória do chavismo nas ruas da Venezuela, seja de forma simbólica ou material. As condições de vida da população são bastante piores do que eram nos tempos de Chávez. A situação do povo é cada vez mais precária, aumentou bastante o nível de pobreza e escassez. Ao longo do governo Maduro ocorreu também uma importante reorientação das políticas públicas, que acentuou uma grande diminuição nas políticas assistenciais por parte do governo e também do encolhimento da dimensão organizativa e participativa da população nas elaboração e implementação dessas políticas.

Quanto mais perdurar esse processo, mais distante fica na memória da população o significado do que foi chavismo, principalmente em relação a experiência de dignidade da população, de organização e ampla participação popular. Vão vinculando o bolivarianismo com Maduro e Maduro com um governo desastroso.

Há um trauma muito grande na população. A crise humanitária gerou uma grande dor nas famílias. São filhos e netos que saíram do país. 3 milhões em uma população de 30 milhões. E essa parcela que saiu é majoritariamente jovem, e isso é um componente muito grande do desgaste do governo e do que ocorre na Venezuela.

Subverta: Aqui no Brasil muito do que nos preocupa é a força da extrema direita, do fascismo, essa coisa da Internacional do Steve Bannon. Para nós é um pouco óbvio o nível de articulação entre essas coisas e o que se passa na Venezuela, mas existem elementos concretos que comprovem essa relação com movimento internacional da extrema direita?

E.L. : Existe com os dirigentes das organizações da direita. Com a Colômbia por exemplo é algo explícito. Não faz muito tempo e tivemos presença paramilitar colombiana. Em termos de discurso político, não existe na direita venezuelana nada parecido com Bolsonaro. Mas alguns líderes já se reuniram com Bolsonaro. Ou seja, para enfrentar o governo estão dispostos a se aliar com quem quer que seja. Dependendo de como seja o fim da era Maduro, pode ser que se construa uma sólida aliança entre a direita venezuelana e do Brasil.

A Assembleia Nacional aprovou uma lei de anistia, a ideia é convencer os militares de que não haverá nenhum tipo de perseguição em caso de mudança no governo. Se não ocorrer a criação de um mecanismo transitório, como a convocação de novas eleições, a tendência é que cresçam posturas de extrema direita, principalmente por pressão internacional.

Subverta: Como estão as forças armadas? Existe um quadro de ruptura com Maduro ou ainda está sob tutela do governo?

E.L.: Primeiro que para os civis as Forças Armadas são sempre uma caixa preta, nunca se sabe o que se passa propriamente em seu interior. Em termos gerais, o que aparece publicamente, parece que existe muito descontentamento entre os familiares dos militares. Reflexo da dificuldade que a população enfrenta no cotidiano. Mas existe muito acordo entre os próprios militares de defesa do governo. Chávez fez um grande processo de transformação ideológica entre os militares e faz com que as forças armadas possuam uma forte identificação com o viés nacionalista, bolivariano, antiimperialista.

Ao mesmo tempo as Forças Armadas são parte intrínseca do governo, inclusive com um claro processo de corporativismo. Sendo as Forças Armadas o grande fiador do governo. Além da questão ideológica tem também o sentido material, pois teriam muito a perder com uma mudança na estrutura do regime, pois também fazem parte dos esquemas de corrupção e apropriação indevida do patrimônio público.

Subverta: E as forças paramilitares? Existe um processo de armamento de parte da população ou  ainda se restringe às Forças Armadas?

E.L.: Nesse ponto são dois aspectos. As Forças Armadas ainda concentram o fundamental do armamento. Entretanto, existem coletivos que derivam do chavismo e que nos seus momentos iniciais eram organizações populares armadas,de resistência, mas que com o avanço da crise humanitária se torna difícil diferencia-los de grupos mafiosos, corruptos, traficantes de alimentos, de drogas e armas. São verdadeiros agentes provocadores. E a quantidade de armas acessíveis para a população agrava a situação, sendo inclusive um dos motivos da crescente violência nos protestos de rua. É um país com uma grande cultura de violência política, violência policial.

Subverta: Qual seriam as tarefas fundamentais para os próximos dias? Pois parece não existir condições objetivas para a construção de uma saída pactuada.

E.L.: Se não existe um mecanismo de diálogo entre as partes, de negociação… A única saída será a guerra. E essa é a pior das soluções possíveis. Não posso acreditar que será pela guerra que iremos resolver nossos problemas.

E digo que em primeiro lugar vem a pátria, devido ao risco de ocorrer um desmembramento do território nacional. Recentemente a marinha venezuelana interceptou um navio da petroleira Exxon invadiu parte do território venezuelano no Delta do Orinoco, uma região de grande concentração de petróleo. Isso ao norte do país e ao sul existe uma enorme zona dominada por grupos paramilitares (narcotraficantes e dissidentes das FARCs) sem nenhum controle por parte do governo central. Portanto, a crise envolve também a questão territorial de nosso país.

 

 

 

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