Eleições nos Estados Unidos, Bernie Sanders e a Superterça (confira os resultados)
Nesse momento que estão em disputa os rumos da principal potência capitalista no mundo é fundamental você saber o que está acontecendo, que impactos isso traz pra sua vida e o que vem pela frente nas eleições estadunidenses
por Thiago Ávila* e Rafael Lopes**
(Vale a pena também ver a sequência de stories nos destaques do Instagram (tanto do Thiago quanto do Rafael) chamado “EUA” e o vídeo “Bernie Sanders vai tornar os Estados Unidos socialista?” do canal Bem Vivendo.)
Os resultados dessa superterça de 3 de março nos Estados Unidos (confira os resultados ao final desse post) consolidam um cenário que já estava posto desde o início das prévias do partido democrata para definir quem enfrentará Donald Trump nas eleições de novembro: uma disputa bastante acirrada entre a ala “moderada” que tem o controle do aparato burocrático do partido e mobiliza setores da alta burguesia dos Estados Unidos em seu favor e, do outro lado da disputa, uma ala mais à esquerda a partir de Bernie Sanders reivindicando um “socialismo democrático”, mobilizando os movimentos sociais e trazendo plataformas de transformação mais radicais que as habitualmente apresentadas pelo partido democrata.
De início a burocracia democrata já havia escolhido Joe Biden como sua aposta prioritária para representar esse setor dito “moderado”. No entanto, sua falta de carisma e seu desempenho muito fraco nos primeiros estados abriu a possibilidade para que outros candidatos disputassem esse espaço, como Pete Buttigieg (que já abandonou a disputa) e Michael Bloomberg (que gastou mais de meio bilhão de dólares em propaganda tentando comprar uma vaga como candidato democrata e falhou miseravelmente, abandonando a disputa após a superterça). Agora, com os resultados da “superterça”, Biden efetivamente se consolida como o pré-candidato democrata dito “moderado” parceiro dos bilionários tanto quanto Trump, mas que não consegue se colocar na opinião pública como “antissistêmico” como o atual ocupante da cadeira presidencial.
Do outro lado, a saída de Elizabeth Warren na última quinta-feira (05/03) deixa como único candidato progressista o Bernie Sanders, que vinha em uma boa sequência de vitórias no voto popular em Iowa, New Hampshire e Nevada, teve um desempenho abaixo do que as pesquisas indicavam na superterça, mas ainda deve ter ao final da contagem de delegados uma quantidade equilibrada em relação a Joe Biden, pois venceu no principal estado, que é a Califórnia (que sozinha tinha quase um terço dos delegados em disputa nesta data). Por ser um estado tradicionalmente de apuração mais lenta (em 2016 levou um mês a apuração da Califórnia), os holofotes estão neste momento voltados para o seu adversário que venceu na maioria dos outros estados. No entanto, Bernie obteve praticamente a mesma quantidade de delegados em estados importantes como o Texas e ainda segue como líder nas pesquisas, principalmente as que tratam das chances de vencer o republicano de extrema-direita Donald Trump nas eleições de novembro.
Estaríamos diante de um quadro onde um “socialista democrático” pode se tornar presidente do país central do imperialismo capitalista mundial? Quem é Bernie Sanders e porque ele hoje é quem tem as maiores chances de vencer Trump? Os Estados Unidos estão em crise? Por que essa é a eleição estadunidense mais importante dessa geração?
Para entender essas questões é preciso compreender a história como ela aconteceu e a partir da perspectiva dos povos (portanto, não a versão oficial dos conquistadores) desde a colonização britânica, passando pelo período mais recente a partir dos anos 80, quando o neoliberalismo toma o poder no país. Também é necessário apresentar o contexto das eleições presidenciais de 2016 que definiram os três polos da disputa política atual: a extrema-direita encarnada por Trump e os republicanos; o polo dos democratas neoliberais; e o setor rebelde, popular e progressista do partido democrata encarnado por Bernie Sanders. Por último, temos que analisar o movimento de massas liderado por Sanders, seus limites e suas potências, para sugerir formas como, a partir de uma perspectiva internacionalista, nós podemos colaborar com as lutas nesse país.
Esse percurso nos ajudará a entender que o contexto atual do país é de uma crise social aguda: desigualdade extrema, profunda crise habitacional com cada vez mais pessoas morando nas ruas, crise de infraestrutura, precarização generalizada com a superlotação de cadeias, sucateamento do sistema educacional e a mercantilização de saúde, endividamento em massa, crianças refugiadas presas em condições degradantes, epidemia de uso de opióides e tantas outras mazelas. Na Casa Branca o presidente da extrema-direita Donald Trump celebra a vitória recente ao enterrar no senado o processo de impeachment e se prepara para mais uma eleição promovendo machismo, racismo, xenofobia, militarismo, negacionismo climático e suas relações com grupos protofascistas e supremacistas brancos.
Nas ruas, no entanto, a situação é diferente: muita mobilização popular contra as medidas do governo e uma coalizão de pessoas, coletivos, movimentos e organizações enraizadas territorialmente fazendo trabalho de formiguinha buscando transformações reais no sistema e soluções reais para os 99% da humanidade e a Natureza. Nesse momento, muitos setores desse movimento social organizado se unem em torno do objetivo comum de consolidar a candidatura e eleger o “socialista democrático” Bernie Sanders à presidência da maior potência capitalista da história. Disputar com chances de vitória uma eleição com uma plataforma antissistêmica de esquerda falando em taxar grandes fortunas, acabar com as guerras imperialistas, garantir saúde e educação gratuita, abolir o encarceramento em massa e promover mecanismos de poder político dentro das empresas para os trabalhadores seria algo impensável até pouco tempo atrás.
Mas é exatamente o que está acontecendo.
UMA HISTÓRIA QUE NÃO CONTARAM SOBRE O POVO DOS ESTADOS UNIDOS
Para que a gente consiga compreender o que acontece hoje nos Estados Unidos, é fundamental voltar ao passado. São processos históricos que definem a forma como a sociedade se organiza, produz e vive hoje. E, de fato, as pessoas sabem muito pouco sobre a real história do povo dos Estados Unidos. Nas aulas de história moldadas pelo sistema de ensino hegemônico ensinam uma história fabricada e estéril: sobre a colônia de povoamento inglês (protestantes, endividados, expurgados e etc) no século XVI e sua contínua expansão empreendedora para o Oeste com o “progresso” nos séculos seguintes, tornando esse lugar a “terra das liberdades, lar dos corajosos”. Essa versão da classe dominante mascara a verdadeira história dos povos desse lugar. E é uma história repleta de lutas, de resistências, de enfrentamento aos poderosos em todas as arenas. O livro de Howard Zinn, “A história do povo dos Estados Unidos” (o mais próximo que conhecemos de uma versão estadunidense das “veias abertas da América Latina”) retrata bem a diferença entre a história oficial e a ocultada.
Os territórios ocupados pelos colonos ingleses 5 séculos atrás não eram um vazio demográfico. Ali viviam povos e nações indígenas há pelo menos 12 mil anos, mantendo sociedades complexas com práticas agrícolas, econômicas e políticas em profunda harmonia com a Natureza e que são uma grande inspiração ao colocar em xeque o conceito de “civilizado” trazido na invasão europeia. Centenas de nações indígenas com milhares de anos e conhecimentos tradicionais acumulados foram exterminadas militarmente, dizimadas por epidemias trazidas pelos europeus, escravizadas, submetidas a estupros e outras barbaridades em um genocídio que ainda é pouco tratado na história e diante do qual não houve qualquer reparação histórica. Assim como no Brasil, esse país viveu também a barbárie da escravidão de povos negros trazidos da África, principalmente com o objetivo de enriquecer os grandes latifúndios brancos de tabaco, algodão e milho do sul do país. E a resistência negra também foi muito importante, formando comunidades chamadas de “maroons”, análogas aos quilombos brasileiros.
A independência no século XVIII e o fim da Guerra Civil no século seguinte, eventos que trouxeram, respectivamente, o fim da colonização europeia, junto ao estabelecimento da democracia representativa, e o fim da escravidão, tampouco trouxeram ao povo explorado e oprimido dos Estados Unidos uma democracia efetiva. As elites controlam a política que, desde essa época, se organizam a partir do bipartidarismo entre republicanos e democratas (que naquela época ainda não tinham o posicionamento atual de conservadores e liberais respectivamente).
A política externa estadunidense possui uma orientação imperialista desde o século XIX, quando o país impõe seu domínio econômico, político e militar em países da América Latina e do Extremo Oriente. A consolidação dos Estados Unidos como potência capitalista vem na Primeira Guerra Mundial, com a devastação da Europa e dos países centrais do capitalismo global. Por ter evitado conflitos diretos – entrando apenas no fim da guerra – e fornecer todos tipos de produtos para as potências europeias, o país deixou a Europa em dívida com seus bancos e suas indústrias. Desde lá a guerra foi um excelente negócio para as elites dos Estados Unidos.
O pós-guerra leva o país a um boom econômico, propagandeando ao mundo o “sonho americano” e o “american way-of-life” como um suposto modelo replicável de oportunidades e empreendedorismo para se contrapor às mobilizações sociais que se alastravam pelo país. Inspiradas na Revolução Russa, as mobilizações de trabalhadores demandavam o poder popular, enfrentando terrível repressão estatal. A “abundância” se desestabiliza em 1929 com a crise econômica mundial seguida pela Grande Depressão nos Estados Unidos. Para reverter esse quadro econômico, que poderia novamente dar força às demandas dos trabalhadores no país, o governo do presidente Roossevelt implementa o “New Deal”: uma série de programas de investimento público em obras de infraestrutura de orientação desenvolvimentista que impulsionaram a economia e trouxeram a possibilidade de negociar alguns direitos a mais para a classe trabalhadora, mas ainda mantendo desigualdades e a exploração sobre mulheres, negros, indígenas, LGBTs e outras maiorias sociais.
Essa foi a época retratada como de Bem Estar Social nos Estados Unidos: mais direitos trabalhistas, crescimento da classe média, poder de consumo, acesso a serviços públicos e outras benesses que, aliadas à duríssima repressão, fragilizaram a mobilização social no período. Além das contradições sociais, esse período também tinha profundas contradições ambientais. Entre as muitas medidas estava a construção das gigantes hidrelétricas, a queima maciça de estoques de alimentos para conter a queda dos preços e um incentivo à sociedade do automóvel que deixam sua marca até hoje.
Após a Segunda Guerra Mundial, a guerra que mais tirou vidas na história da humanidade e cujo foco maior de conflitos foi novamente na Europa, os Estados Unidos emergem como principal potência capitalista do mundo, em oposição a comunista União Soviética. O imperialismo estadunidense agora ganha escala global e realiza comprovadamente mais de cem intervenções, ocupações, guerras e golpes em países estrangeiros desde esse período até hoje. O padrão da intervenção imperialista em países da periferia capitalista é recorrente. Os governos retirados eram normalmente desobedientes das ordens dos 1% estadunideses mais ricos. Eles são substituídos, então, por governos mais “amigáveis”, levando a cabo privatizações, concessões de bens primários como água e energia, fim de tarifas de importação, retiradas de leis ambientais, retiradas de direitos trabalhistas, precarização dos serviços públicos locais e tantas outras coisas. Soa familiar?
Passando para a história recente, nos anos 80, o Estado de Bem-Estar nos Estados Unidos começa a ser desmontado a partir da eleição do republicano Ronald Reagan. Reagan se une à inglesa Margaret Thatcher e ao ditador chileno Augusto Pinochet para promover no mundo o neoliberalismo, modelo econômico inspirado em Friedman e Hayek propagandeado como a “etapa superior do capitalismo”. O que ele faz, no fundo, é colocar o povo trabalhador para pagar a conta das crises econômicas e concentrar renda nas mãos das elites. Após oito anos de governo Reagan com a divulgação de “vitórias econômicas”, os Estados Unidos viram um aumento severo nas desigualdades, o sucateamento e privatização dos serviços públicos, a retirada de direitos trabalhistas e a precarização da vida cada vez maior, com a pobreza crescendo mesmo no coração do capitalismo. São práticas de superexploração que durante décadas marcavam a vida apenas dos povos da periferia do capitalismo, mas que desde o governo Reagan vão crescer no coração do sistema.
Depois de três derrotas sucessivas contra republicanos, um grupo de democratas mais à direita (chamados de “Novos democratas”) tomam a liderança do partido e a presidência do país com Bill Clinton. Hillary Clinton e Joe Biden também faziam parte desse grupo. Eles se diziam nem conservadores, como os neoliberais republicanos, e nem radicais, como os democratas defensores do Estado de Bem-Estar Social. Faziam o discurso “nem esquerda, nem direita, pra frente”. Eram de direita.
Com a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o bipartidarismo nos Estados Unidos indo cada vez mais à direita, teóricos do capitalismo propagandearam que havia chegado o “Fim da História” e que agora havia chegado a era do neoliberalismo. Agora não importava se o governo eleito fosse Republicano ou Democrata, o programa neoliberal e imperialista que prejudica a maioria da população mundial em benefício de um punhado de bilionários não seria tocado, mantendo suas regras básicas do “Consenso de Washington”.
Foi exatamente o que ocorreu com os sucessores de Clinton: George W. Bush e Barack Obama. O primeiro, junto a seu vice Dick Chenney, aprofundou a barbárie cultivada no país ao prover as condições para a crise das hipotecas subprime e de toda a política de especulação financeira em 2008, e aquela levada ao mundo pelo imperialismo através das farsantes guerras do Afeganistão e do Iraque. O segundo, cujo vice foi Joe Biden, possuía um verniz progressista, mas é responsável por dar resgates a bancos e fundos públicos que estavam declarando falência pela crise de 2008, oferecendo mais de 700 bilhões de dólares dos fundos públicos (valor que seria suficiente para acabar com toda a fome no mundo muitas vezes), e por continuar com a política de encarceramento em massa. Externamente, manteve a posição imperialista capitaneando a invasão e destruição da Líbia, a guerra na Síria, manteve e aprofundou a espionagem e hipervigilância e, como sempre, manteve a intervenção, desestabilização e promoção de golpes de Estado no exterior, como o da presidente Dilma Rousseff no Brasil.
Após o segundo mandato de Obama sua aprovação era relativamente alta. Ainda assim, por ser um governo democrata “do sistema”, foi incapaz de promover as mudanças reais que havia prometido. Como aconteceu em tantos países cuja “esquerda” não tinha uma perspectiva radicalizada, sua atuação acabou dando margem a figuras da extrema-direita aparecerem como “de fora” ou antissistêmicos.
Esse foi o principal pano de fundo das eleições de 2016.
AS HISTÓRICAS ELEIÇÕES DE 2016
A história da eleição de 2016 nos Estados Unidos pode ser contada de várias formas. Da candidata democrata liberal “de Wall Street”, do outsider da extrema-direita bilionário que se dizia “antissistêmico” e do senhorzinho azarão de Vermont que mobilizou um incrível movimento de massas.
A experiente Hillary Clinton era secretária de Estado de Obama e foi escolhida pela burocracia do partido democrata em um processo bastante controverso. O histórico de um governo “do sistema” como Obama, escândalos de vazamentos da relação com Wall Street, acordos ocultos com a alta burguesia estadunidense e a preferência da direção democrata à sua candidatura colocaram Hillary numa posição de candidata da manutenção do status quo.
Em um momento de crise aguda essa associação com “o sistema” não é a melhor opção, e abriu margem para uma figura insólita conhecida como apresentador de reality shows e que agora se vendia como outsider: o bilionário Donald Trump. O bilionário herdeiro sem nenhum carisma, associado a tudo que é mais corrupto, mas que conseguiu convencer uma boa parte da população estadunidense que ele era o “novo” na política e que acabaria com a corrupção de Washington.
Não é exagero dizer: Donald Trump hackeou as eleições estadunidenses.
E fez isso utilizando mecanismos super elaborados de manipulação de massa combinando o que havia de mais avançado em várias áreas: captação criminosa e análise de dados em massa na web (big data), estudos de vanguarda na psicologia comportamental para manipulação, uma rede internacional de fake News ligada à Cambridge Analytica e ao Steve Bannon e uma quantidade obscena de dinheiro. E esse hackeamento não ocorreu apenas nos EUA: essa mistura explosiva de técnicas de manipulação alterou o resultado das eleições brasileiras, do Brexit no Reino Unido e de eleições em cada vez mais países, direcionando-as em todos os casos para o crescimento da extrema-direita.
Concorrendo contra uma candidata “do sistema”, Trump elevou o tom contra o neoliberalismo, se colocou em defesa dos trabalhadores precarizados do centro decadente do país, ativou preconceitos contra setores oprimidos na sociedade e se colocou com a pessoa que tornaria “América Grande novamente”. A falta de uma real alternativa radical à esquerda que falasse contra o sistema fez com que Trump vencesse as eleições no sistema indireto dos Estados Unidos, mesmo que mais pessoas tenham votado em Hillary do que nele.
Mas as eleições de 2016 não ficaram marcadas apenas pela eleição do pior presidente da história dos Estados Unidos. Ela também marca o surgimento de um inspirador movimento de massas que chacoalhou o cenário político a partir da pré-candidatura de um senador da esquerda radical chamado Bernard Sanders.
BERNIE SANDERS E SUA COALIZÃO
É relevante conhecer mais sobre a trajetória de Bernie. Ele vem de uma família trabalhadora judia de Nova York. Desde sua juventude se envolveu em movimentos sociais e na luta pelos direitos humanos e trabalhistas, em especial contra as políticas segregacionistas dos Estados Unidos. Há muito tempo ele se coloca como “socialista democrático”, desafiando o imperialismo e o anticomunismo vigente nos EUA.
A história política de Bernie, que foi prefeito, deputado e senador, é marcada pela defesa da redistribuição da riqueza, expansão de programas sociais e serviços públicos, também pela luta junto a movimentos sociais, movimentos antirracistas, pela ampliação do acesso ao aborto, legalização da maconha, entre outros. Esses eram assuntos “marginais” nas décadas passadas (e ele já os defendia enquanto político independente, fora do partido democrata), mas pela história recente dos EUA tomaram o centro da discussão política.
É admirável ver vídeos e outros materiais de Bernie há 20, 30, até 40 anos atrás, onde ele defende as mesmas pautas que defende hoje, e com a mesma firmeza. É uma pessoa que realmente dedicou sua vida a essas causas. Mas é importante alinharmos as expectativas aqui: Bernie não se coloca como um ecossocialista ou um revolucionário para uma sociedade comunista. Na maior parte do tempo seu programa se aproxima mais de uma social-democracia radical promovendo um retorno dos Estados Unidos a um Estado de Bem-Estar Social, o mesmo projeto que o país abandonou muitas décadas atrás para dar lugar a modelos também capitalistas, porém mais agressivos. Seu programa popular é intransigente na defesa de serviços públicos gratuitos e de qualidade, taxação de grandes fortunas, direitos trabalhistas, maior participação política, fim das guerras imperialistas pagas pelo povo, políticas socioambientais interessantes e muitas outras medidas progressivas. Considerando a atual situação dos Estados Unidos e sua atuação atual na geopolítica não há dúvida alguma que é um grande avanço. É suficiente? Ainda não.
Bernie começou a disputa das prévias democratas em 2016 com menos de 1% da preferência entre democratas e terminou com 43% dos votos de delegados na convenção eleitoral do partido, vencendo Hillary e todo o dinheiro e poder da burocracia democrata em 23 estados. Mas a votação interna era o menos importante. O que fez a diferença foi o que Bernie estimulou para além da cabine de votação. Mesmo com seus limites, a pré-candidatura de Bernie em 2016 conseguiu mobilizar muitos setores sociais que possuem enraizamento genuíno na classe trabalhadora, mas que estavam desconectados de um projeto político maior. Sindicatos de diversas categorias, movimentos de negritude, movimentos contra a mudança climática, coletivos da esquerda radical (ecossocialistas, marxistas-leninistas e até anarquistas), movimentos de população migrante, e muitos outros deram um grande salto de qualidade na pré-campanha presidencial. Sua campanha também teve o apoio formal dos socialistas democráticos da DSA, organização que constrói o Partido Democrata, mas possui um posicionamento bem mais à esquerda. Até o Partido Comunista dos EUA o apoiou.
Bernie perdeu nas prévias democratas de 2016 (não sem muito boicote da burocracia partidária), mas se lançou como a principal figura política no país de oposição antissistêmica. Sua pré-campanha mobilizou milhares de pessoas em comícios massivos e utilizou métodos de organização relacional muito potentes que estão transformando a forma de fazer campanha nos Estados Unidos e no mundo.
A metodologia de organização relacional para um trabalho de formiguinha (lá chamado de “grassroots”) trazendo uma conexão entre todas as lutas contra exploração, opressões e destruição do planeta se mostrou como o mais potente método de mobilização popular para derrotar a extrema-direita. Foram criados comitês locais que tratam no cotidiano das pessoas tanto de eleições como de questões sociais diversas e que obtiveram muitas vitórias nos últimos anos. Esses grupos ligam para as pessoas, conversam e criam formas de ação conjuntas, desde a luta por um aumento de salário para trabalhadores da Amazon e da Disney (e ambas foram vitoriosas), ou o direito à organização sindical no Walmart, ou a potente eleição de mulheres negras e pobres para cargos institucionais.
Uma dessas grandes vitórias foi a eleição de Alexandria Ocasio Cortez (AOC) em 2018 como deputada com uma plataforma radical de redistribuição de renda e a proposta do “Green New Deal”. AOC contagiou o país, se consolidou como uma das pessoas mais influentes da política estadunidense e hoje é a principal aliada de Bernie Sanders na campanha presidencial. O aporte de AOC para esse processo com o “Green New Deal” foi fundamental, pois conectou mais a campanha com a onda de mobilizações em defesa do clima e ainda mais juventude construindo uma alternativa de futuro para a população. Porém aqui novamente precisamos alinhar as expectativas. O “Green New Deal” tem boas iniciativas na transição para empregos verdes, energias verdadeiramente renováveis, leva em consideração a relação entre mudança climática e opressões, mas ainda é “desenvolvimentista”, muito voltado ao carbono e pouco atento a outros aspectos ambientais fundamentais. Embora seja um começo importante, ainda não dá conta de todos os desafios para impedir a destruição do planeta.
Alexandria Ocasio Cortez, Ilhan Omar e outras jovens mulheres negras e muçulmanas têm dado uma nova cara à política estadunidense. Se o sistema político é capturado pelo poder econômico e feito para reproduzir as injustiças sociais, é possível dizer que elas e Bernie, apostando no trabalho de formiguinha enraizado e na mobilização popular, também estão de certa forma “hackeando” o sistema.
AS ELEIÇÕES DE 2020
Toda essa construção social para fora da institucionalidade fez com que a eleição atual se tornasse algo mais próximo de um movimento de massas. Bernie, agora com mais experiência, viu quase todos os outros pré-candidatos democratas que se lançaram nas prévias adotando itens do seu programa, vencendo um primeiro desafio de “deslocar o partido democrata mais à esquerda” que o habitual. Mas essas pré-candidaturas não possuíam a articulação política com os movimentos e o histórico de lutas coletivas de Bernie.
Seu método de “organização relacional” cativa as pessoas e potencializa ainda mais sua coerência política ao despessoalizar a campanha com o lema “Not me, us” (eu não, nós) e com a recusa de receber grandes doações privadas. Sua campanha foca nas pessoas comuns, em pequenas doações e pequenas ações locais de pequena escala que, quando juntas, se tornam algo de imensa escala. Essa construção coletiva e a presença dos movimentos sociais tornou a plataforma de campanha ainda mais radical e antissistêmica que na última eleição. Ao invés de apostar na moderação e conciliação, a campanha aposta na radicalidade e diz com todas as letras:
“Somos o pior pesadelo de Trump, dos bilionários, da indústria farmacêutica, dos bancos, das fabricantes de armas, das empresas do complexo prisional, das empresas de plano de saúde, do charlatanismo religioso”.
Atualmente, a plataforma já possui itens que ultrapassam propostas meramente social-democratas, como o controle popular das empresas pelos próprios trabalhadores e a transferência de 20% das cotas dessas empresas para eles. São vários giros de grandes proporções que alterariam de forma significativa o papel imperialista dos Estados Unidos no mundo, com o fim das guerras, das intervenções e com uma política progressiva com relação ao meio ambiente (para o desespero do atual governo brasileiro). E, vindo de Bernie, não seriam propostas vazias pois se conectam com suas posições históricas contra as guerras imperialistas, embora ainda existam equívocos importantes de análise de conjuntura internacional (um dos limites mais evidentes do candidato).
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA CAMPANHA DE BERNIE SANDERS
Chegando à grande questão do momento, mesmo com toda a mobilização de massas em torno de sua campanha e as pesquisas indicando que Bernie é o único candidato capaz de vencer Trump em novembro, ainda existe a chance do partido democrata inviabilizar sua candidatura. Seu principal oponente é Joe Biden, vice-presidente de Obama. Biden é um dos preferido dos bilionários e das empresas de cartão de crédito que sempre o financiaram em troca de benefícios. Ele teve envolvimento direto na aprovação da Guerra do Iraque, na política trágica de guerra às drogas, nas leis que promoveram o encarceramento em massa e nas desregulamentações do sistema financeiro que geraram tamanhas crises no mundo.
A última debandada da disputa das prévias foi de Elizabeth Warren na última quinta-feira (05/03), que se colocou nas prévias em uma posição intermediária e de mediação entre as candidaturas de Biden e Bernie, trazendo algumas questões mais progressistas mas ainda mantendo pontos em comum com a maioria do partido democrata por não ter um horizonte de romper com a lógica “do sistema”. Ela teve um desempenho ruim em todos os estados nas prévias que participou (inclusive em Massachussets, seu estado de atuação). Por ter um eleitorado progressista, a tendência é que muitos de seus eleitores migrem para a candidatura Bernie Sanders, embora ela ainda esteja negociando sua posição formal de um apoio por maior coerência com Bernie (apesar das relações pessoais entre eles ser bastante desgastada), ou algum acordo político com Biden, que poderia até envolver uma proposta de vice-presidência.
Até o dia da superterça ainda estava na disputa também o bilionário, ex-prefeito de Nova Iorque, e oitavo homem mais rico dos Estados Unidos, Michael Bloomberg. O bilionário nem tentou participar das prévias dos primeiros estados, contando com seus fundos quase ilimitados para comprar a nomeação a partir de um investimento pesado em anúncios publicitários em estados-chave e salários elevados para equipe de campo ao redor do país. Os gastos com sua pré-campanha se aproximaram de um bilhão de dólares, sem nenhum resultado relevante mesmo após a superterça, sendo considerado um dos maiores fracassos políticos da história recente quando ele abandonou a disputa e indicou voto em Joe Biden no dia seguinte à superterça.
Por fim, há os dois candidatos cuja saída da corrida ainda antes da Superterça transformaram a disputa. Amy Klobuchar, a neoliberal exaltada pela grande mídia e Pete Buttigieg, outro neoliberal que apostou no seu carisma pessoal e em doações da elite estadunidense para conseguir a nomeação e, apesar de ambos terem se destacado nos dois primeiros estados, perderam força rapidamente e se afastaram da disputa indicando voto no Biden para formar uma “coalizão moderada” contra Bernie. Até a véspera da superterça, a campanha de Bernie Sanders ainda se beneficiava de uma diluição nos votos das pessoas mais conservadoras entre uma quantidade grande de pré-candidatos mais à direita, mas agora os doadores super-ricos, a grande mídia hegemônica e a ala mais conservadora começam a se unir em torno da candidatura de Joe Biden contra o suposto “radicalismo” de Bernie Sanders.
Institucionalmente, está cada vez mais evidente que a alta hierarquia democrata, ligada aos bilionários e ao sistema, prefere perder mais uma eleição do que perder o controle de seu partido e deixar de ser a linha política hegemônica interna. É uma armadilha perigosa que tende a levar a uma derrota eleitoral caso Biden concorra contra um Trump, que ainda se coloca como “antissistêmico”. O resultado disso para o povo estadunidense e para o resto do mundo seria desastroso. Ainda assim, essa coalizão dita “moderada” tenta justificar sua cruzada “contra a revolução de Bernie” a partir de uma visão equivocada que, mesmo diante de tamanha crise que o país vive, as pessoas estariam em busca de um bom gestor que traga resultados dentro do sistema e que Biden seria supostamente a “escolha segura” para vencer Trump em novembro. Essa ideia de “elegibilidade” e de que Biden seria a pessoa capaz de vencer Trump puxando os votos em novembro do cidadão médio e branco estadunidense tem também levado ele a cativar setores populares que não se mobilizam a partir dos movimentos sociais que estão com Bernie, inclusive uma grande maioria do voto da população negra do país (principalmente do leste dos EUA). Esses votos, inclusive, fizeram toda a diferença para ele na superterça.
Os ataques à plataforma política e à construção social promovidas na campanha de Bernie Sanders vêm de todos os lados. Wall Street, por exemplo, desde cedo sabe o tamanho da ameaça que Bernie representa e reitera com veemência que ele precisa ser parado imediatamente. E embora já exista, ainda não vimos nem uma pequena fração do que serão os ataques dos republicanos e da extrema-direita ao Bernie, portanto, não terá caminho fácil até novembro em nenhum dos cenários. Ainda assim, há quem acredite que seria mais fácil para Bernie vencer as eleições contra Trump em novembro do que conseguir a nomeação para concorrer pelo partido democrata em julho.
À parte o boicote interno do partido e os ataques do sistema, Bernie ainda ocupa um lugar de destaque como a campanha que mais mobiliza a juventude, mais consegue doações individuais da classe trabalhadora (só no mês de fevereiro foram 46 milhões de dólares, feitos exclusivamente de pequenas doações tendo uma média de 18 dólares por doação e sendo a maior categoria doadora de professoras). E ainda segue como o candidato com maiores chances de derrotar Trump nas eleições justamente por ser o único candidato antissistêmico nessas eleições.
A SUPERTERÇA E OS PRÓXIMOS PASSOS
Os resultados da superterça foram abaixo do esperado para Bernie Sanders. Joe Biden venceu nos estados do Alabama, Arkansas, Carolina do Norte, Maine, Massachusetts, Minnesota, Oklahoma, Tennessee, Texas e Virginia. Ainda assim, Bernie conseguiu a vitória em Vermont (seu estado), Colorado, Utah e, principalmente, na Califórnia onde está o maior número de delegados, além de ter praticamente empatado em delegados no Texas (segundo estado com maior número de delegados em disputa naquela noite). Até o final da apuração da Califórnia e com a distribuição final de delegados do Colorado, tende a recuperar e tem chances até de passar e construir uma vantagem significativa na quantidade de delegados.
A disputa segue viva e a expectativa aumenta sobre as prévias da próxima terça-feira (10/03) em Dakota do Norte, Idaho, Michigan, Mississipi, Missouri, Washington e os democratas que estão no exterior (totalizando 365 delegados nessa noite). No domingo dessa mesma semana (15/03) haverá também o debate nacional no Arizona, que antecede as prévias de outros quatro estados (entre eles a Flórida) com outros 577 delegados em jogo. A diferença qualitativa é que, com a saída de Bloomberg e Elizabeth Warren, a disputa se tornou realmente um contra um entre Bernie e Biden, sendo que esse último contará com o apoio da alta hierarquia democrata, com a alta burguesia estadunidense e com as grandes corporações de mídia. A campanha de Bernie segue mobilizando, pois é um processo sólido que ultrapassa a disputa eleitoral e que ainda tem potência para disputar com força a indicação democrata. Mas, sem dúvida, seria mais seguro caso tivesse conseguido uma vitória contundente que desencorajasse os golpes internos do partido contra sua candidatura até a convenção nacional do partido.
Essa consolidação da disputa direta entre Bernie e Biden, acirra bastante as prévias, trazendo pontos positivos e negativos. Embora a força da “coalizão moderada” seja grande e comece a mobilizar ainda mais o dinheiro do conglomerados eleitorais (chamados de PACs e SuperPACs), e hoje as candidaturas “anti-Bernie” tenham mais delegados somados que a candidatura de Bernie Sanders, Joe Biden, apesar do resultado relevante nas últimas disputas, segue sendo aquela figura sem carisma, visto como “amigo dos bilionários” e com o histórico de ter votado contra o povo estadunidense em grandes eventos da política nas últimas décadas (da guerra do Iraque à retirada de direitos e acordos com os bancos). E Bernie em todos esses momentos se posicionou em favor do povo e contra os interesses das elites, algo que pesa a seu favor na disputa.
Uma das grandes vitórias políticas desse processo também é vencer a ilusão do discurso meritocrático e individualista. A campanha de Bernie fala abertamente que as injustiças sociais e a precarização não são culpa das pessoas pobres, mas sim de relações históricas de exploração e propriedade em um sistema que serve apenas à classe dirigente.
De certa forma, a campanha de Bernie tem tido sucesso em trazer a luta de classes para o debate, embora ainda tenha muitas confusões sobre o sentido que ele atribui ao socialismo. E esse debate abre um horizonte muito grande para a politização das pessoas que, cada vez mais, estão percebendo que a luta coletiva é possível, traz vitórias e tem poder de realmente transformar o mundo!
Essa perspectiva de uma luta de longo prazo, que ultrapassa o horizonte das urnas em períodos eleitorais, vai ser fundamental caso Bernie consiga superar todos esses grandes desafios à sua frente e efetivamente vença as eleições. Todos os poderes estabelecidos nos Estados Unidos vão se empenhar em destruir esse projeto de emancipação (seja no legislativo, no judiciário e até na perseguição e repressão física), portanto, só a mobilização e o Poder Popular podem trazer a força necessária para garantir as transformações.
Nós da América Latina sabemos muito bem como governos populares podem ser derrubados violentamente. O socialista Allende, mais radical que Sanders, subiu ao poder pelo voto, mas foi derrubado pelos militares com apoio dos Estados Unidos. E tem muitos exemplos no próprio país de assassinatos, perseguições a pessoas e movimentos sociais pelo FBI e CIA, que levaram a vida de grandes lutadores como Martin Luther King, Malcom X e Fred Hampton do Partido dos Panteras Negras. É por isso que esse processo só pode vencer a partir da coletividade. E é aí que entra a contribuição que nós também podemos dar a esse processo enquanto formiguinhas internacionalistas!
O destino do Brasil (e do mundo) está profundamente conectado ao destino da maior potência capitalista atual. Vencer a extrema-direita no coração do sistema fortalece nossa resistência em todas as partes, principalmente no atual Brasil do bolsonarismo!
E O QUE NÓS PODEMOS FAZER PARA COLABORAR COM A LUTA DO POVO DOS ESTADOS UNIDOS NESSE MOMENTO?
A primeira coisa é ler, pesquisar e divulgar o que está acontecendo lá. Conhecer é fundamental. Muita gente não consegue fazer a separação entre a classe dirigente imperialista, responsável por tudo de negativo que essa potência promoveu ao longo dos séculos, e o povo dos Estados Unidos, que em muitos casos lutou e segue lutando com todas as suas forças contra esse sistema em seu próprio país. Estigmatizar o povo desse país seria um grande erro ou se fechar a conhecer sua história e se solidarizar com suas lutas. Quem tiver mais disposição nas redes pode também apoiar diretamente a campanha presidencial divulgando os materiais, participando de atividades de voluntariado e outras formas de apoio.
A segunda coisa é promovendo atividades internacionalistas no Brasil. Busque construir coletivos internacionalistas em sua cidade e seu bairro. As lutas estão todas conectadas: no Brasil, nos EUA, na Palestina, no Curdistão e em todas as partes! Fortalecer o internacionalismo no geral acaba colaborando com os mecanismos de mobilização de uma solidariedade de classe genuína para esse país e para todos os demais.
E, principalmente, construa fora das redes atividades de transformação do mundo onde você está, lutando para transformar seu bairro, sua cidade e o Brasil, conectando a sua atuação numa perspectiva de curto, médio e longo prazo nas cidades, no campo e nas florestas e em escala global! Assim a gente consegue acabar com a exploração, com todas as opressões e a destruição do planeta e construir uma nova sociedade!
Nossa Revolução, para vencer realmente, precisa ser internacionalista e acontecer em escala global!
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* Thiago Ávila é socioambientalista, produtor de conteúdo no Instagram e no canal Bem Vivendo do Youtube e militante do Subverta e da IV Internacional.
** Rafael Lopes é pesquisador, militante do Subverta e da IV Internacional.
A mais brilhante, esclarecedora e bem articulada exposição de História Política dos EUA que já li, ever! Obrigada, Thiago e Rafael, vocês são estupendos na capacidade de explicar uma vasta correlação de fatos históricos, sem perder de vista a outra ponta visceral da corda dos poderes – o enraizamento nas lutas populares e seu poder de expansão e entrelaçamento uns com os outros, onde reside sua força. Vou repassar o texto, que é longo, sim, mas indispensável. Aulão de altíssima qualidade. Merci!❤
Vera Costa
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Perfeita a análise! Consigo atualizar minhas análises a partir dessas abordagens que considero necessário, tendo em vista as diárias meio informações em outras mídias.
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