Novidades

Convergências e Divergências entre Dissidência Sexo/Gênero e o Marxismo – Parte 1

*Por Gil Puri, pessoa indígena Puri e não-binárie. Tem formação em Ciências Sociais e é ativista da diversidade sexual e de gênero.

Ao se debruçar sobre as contribuições do antropólogo Louis Morgan com seus estudos sobre as primeiras constituições de família, relacionamento e governo, Engels deu vida à obra inaugural do que hoje podemos chamar de feminismo marxista “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, mostrando que a subjugação feminina está relacionada com o surgimento da propriedade privada e pessoal e da monogamia. Se por um lado, Engels foi pioneiro na análise socialista da questão de gênero, no que se referia ao tema da sexualidade, havia não só o desinteresse, mas também certa repulsa: “Os pederastas estão começando a se afirmar e a descobrir que são um poder no estado. (…) as coisas vão ficar péssimas para nós, pobres coitados que preferem a frente, com nosso gosto infantil por mulheres”, disse ele a Marx em uma carta enviada em 1869. Parecia que, no que dizia respeito à homoafetividade, o pai do socialismo científico ainda possuía resquícios do seu passado calvinista fervoroso.

Na esteira do desenvolvimento intelectual e do surgimento de filósofos humanistas críticos ao Cristianismo, a psicanálise estava começando a se interessar pelo debate sobre as questões “sodomitas” — termo utilizado na época para se referir a homossexualidade — e, dessa forma, o que era considerado um pecado segundo a moral cristã no século XVIII começava a ser visto como uma questão de anormalidade cientifica, ou seja, motivada por distúrbios psíquicos e comportamentais e por isso, tornando possível que pudesse ser revertida a partir de tratamentos clínicos.

Eduard Bernstein seria a primeira figura do movimento socialista a olhar para essa situação de ilegalidade e anormalidade psíquica com que a sodomia era tratada pelos governantes dos países liberais e monarquistas de forma contestadora, divergindo inclusive de integrantes do Partido Social Democrata Alemão do qual também fazia parte e de militantes comunistas ao redor do mundo: “As relações sexuais entre os indivíduos do mesmo sexo são tão velhas e estão tão disseminadas que não há etapa da cultura humana da qual se possa dizer que estava livre desse fenômeno. (…) Os pontos de vista morais são manifestações históricas, não são guiados pelo que se supõe ter havido no estado natural, mas sim pelo que é considerado normal num dado estágio do desenvolvimento social”. Bernstein analisava as relações sexuais e seu julgamento pela classe dominante com as lentes do materialismo histórico, que se relacionou com as questões ideológicas principalmente na obra “A Ideologia Alemã”, quando Marx discorre sobre como a religião, a moral e a cultura vigentes — ao qual ele chama de Superestrutura — são resultado dos aspectos econômicos que organizam a sociedade — Estrutura — e refletem a mentalidade da classe dominante: “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual; de tal modo que o pensamento daqueles a quem é recusado os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante”. Marx nos mostrou que, além do aparato repressivo que o Estado burguês possui para exercer domínio sobre a classe trabalhadora — expressos, sobretudo, pela polícia e o exército — havia também o que o intelectual marxista Louis Althusser iria chamar, em seu livro de mesmo nome publicado em 1970, de “Aparelhos Ideológicos do Estado”.

O debate sobre a legitimidade das sexualidades e performances de gênero desviantes e de sua repressão como sendo fruto da moral burguesa dominante começava a se espalhar por entre os círculos marxistas de todo o mundo, dividindo opiniões entre os partidos e outras organizações. Mas esse assunto só iria ser incluído efetivamente na esfera institucional a partir da Revolução de Outubro, comandada por Lênin, Trotsky e o partido Bolchevique em 1917, na URSS. Um grande personagem fundamental que encabeçou essa discussão no interior do partido revolucionário foi Alexandra Kollontai. Eleita Comissária do Povo para assuntos de bem estar social, se engajou com a Liga Mundial pela Reforma Sexual, pautando discussões essenciais para a emancipação feminina e a favor da diversidade sexual.

Dessa forma, em 1918, em meio a desapropriação da burguesia e monarquia absolutista, a socialização dos meios de produção e o abastecimento de insumos para o proletariado, foi também destituído o Código Penal czarista, que previa, dentre outras coisas, punições como o encarceramento e exilio para pessoas que praticassem atos sexuais que se desviassem da norma. Cinco anos depois, essas reformas seriam efetivadas com a promulgação de um novo Código Penal, que deixava nítido que o Estado não iria interferir no que considerava questões pessoais de seu povo; além disso, dois grandes avanços da época foram a descriminalização do aborto e a do divórcio e, em 1926, a possiblidade de se alterar a identificação de gênero em passaportes e quaisquer outros tipos de documento de identificação.

A União Soviética e o Marxismo Revolucionário se mostravam totalmente a frente de seu tempo já que as conquistas adquiridas naquela época só seriam realidade para outros países, como os Estados Unidos e boa parte da Europa, décadas depois e advindas de muita luta pela libertação gay; e basta um aprofundamento teórico mínimo para revelar que, diferente do que defendem muitos pensadores liberais que tentam apagar o protagonismo da luta socialista na pauta da diversidade sexual e de gênero, estes foram os primeiros a se engajarem de fato pela liberdade plena da classe trabalhadora em suas mais diversas particularidades — raça, classe, gênero e sexualidade.

Nessa altura, surgiram muitas mulheres que se vestiam sempre como homens e procuravam viver como eles, como era o caso de várias comandantes do exército e membros de instituições acadêmicas e culturais. Algumas delas, declarando-se abertamente lésbicas, chegaram a exigir o direito à união com pessoas do mesmo sexo. Outras desejavam mudar de identidade e passar a ser homens, ou adotavam variantes masculinas do seu nome de batismo, havendo mesmo quem pedisse intervenções cirúrgicas para mudança de sexo. Todas elas tinham ganho visibilidade na sociedade daquele tempo, porque a revolução de Outubro lhes permitira exprimir-se de forma não convencional e elas eram aceites sem objeções nos meios mais esclarecidos. De resto, o novo tipo de mulheres, participantes enérgicas e confiantes da nova sociedade, deu origem a comentários de visitantes ocidentais sobre a suposta “masculinidade” das russas. Um dos casos mais famosos foi o do soldado Evgenii Federovich, antes chamado Evgeniia, que em 1922 casou com uma empregada dos correios da cidade onde estava localizado o seu regimento. Quando se descobriu que era mulher, foi acusada pelo tribunal local de cometer um “crime contra natureza”, mas o Ministério da Justiça declarou o casamento “legal, porque consumado por mútuo consentimento.”

Em relação aos homens “femininos”, aliás, a tolerância era muito menor. Ficou célebre o caso de um oficial do exército que mudou oficialmente de identidade, passou a comportar-se em tudo como mulher e exerceu a profissão de enfermeira, mas, de uma maneira geral, havia menos simpatia para as travestis e os homossexuais do sexo masculino.

Além de poderem exercer suas expressões de sexualidade e gênero nos mais diversos âmbitos da vida — inclusive no campo cultural e intelectual, já que, durante os anos em que vigorou o poder popular, eram incentivades a produção e publicação de obras com temática LGBT — também era bem-vindes dentro das instâncias do próprio partido. George Chicherin, ex-aristocrata e posteriormente militante do partido bolchevique, sucedeu Trotsky como Comissário do Povo para as Relações Internacionais e, desde então, passou a estabelecer uma relação de intimidade e respeito com Lênin, que não poupava elogios ao camarada em cartas trocadas por eles. Homossexual assumido, lutou contra o imperialismo e a favor do internacionalismo e união dos povos de outros países para denunciarem os ataques imperialistas que a Rússia soviética estava enfrentando. Durante meados da década de 20, Chicherin começou a sentir na pele a homofobia descarada de alguns outros integrantes do partido, que já prenunciava os anos de repressão, censura e delapidação de direitos que ele e outros homossexuais sofreriam após a morte de Lênin e a instituição da contrarrevolução stalinista.

O único país ocidental exceção a esta regra foi, durante um curto espaço de tempo antes da II Guerra Mundial, a Alemanha. Necessário destacar este caso específico por duas razões: 1º por ser único na Europa Ocidental; 2º por a luta dos ativistas homossexuais de esquerda ter sido apoiada pela esquerda e em especial pelo Partido Comunista Alemão, contrapondo-se ao anticomunismo radical dos grupos homossexuais de direita e centro. Sendo o partido que mais longe levou a sua compreensão do fenômeno da homossexualidade, o PCA considerava-a mesmo assim uma doença, ao defender, numa resolução do seu congresso de 1927, “a revogação da penalização legal de relações sexuais antinaturais” por ser uma obstinação inútil “combater enfermidades com a lei penal”. Antes das eleições parlamentares de 1930, a organização de direitos dos homossexuais, o Comitê Científico Humanitário, afirmava: “O único partido que representou o ponto de vista científico humanitário sem reservas e, tanto quanto for humanamente possível, o representará mais uma vez no novo congresso, foi o Partido Comunista Alemão.”

Vivendo em Berlim, em 1933 William Reich publicou “A Psicologia de Massas do Fascismo”, em que demonstra que, no plano psicológico, o fascismo apoia-se na estrutura neurótica da família patriarcal, autoritária e repressora, reprodutora de adultos insensíveis, petrificados e indiferentes, necessários para o capitalismo industrial instaurar um tipo de trabalho rotineiro, repetitivo e inimaginativo. Essa “praga emocional” ou “a supressão organizada da vida”, como lhe chamou, era a matéria que compunha a psicologia de massas do fascismo.

O período em que vigorou a burocracia stalinista em terras soviéticas foi responsável por ceifar a liberdade de diversos artistas, intelectuais, opositores marxistas ao regime e civis homossexuais. A partir da década de 30, começou a ser propagado não só por Stálin mas por diversos outros integrantes do Partido Comunista a ideia de que o “homossexualismo” seria um desvio burguês e monárquico, herdado das ideologias fascistas e czaristas, e que, por isso, deveria ser combatido para que a integridade da Revolução se mantivesse. E foi assim que, em 1934, a homossexualidade passou a ser considerada crime passível de cinco anos de detenção. Esse fato aterrador provocou a ira de diversos camaradas marxistas ao redor do mundo e dentro do próprio P.C, que observavam com lamento o caráter emancipador e anti-opressão do marxismo revolucionário ser amputado em nome de uma tirania sem precedentes. Um deles foi Harry Whyte, homossexual integrante do P.C. britânico e editor do jornal Moscow News, que enviou uma carta — que nunca chegou a ser lida — a Stálin em 1932 numa tentativa de buscar um fundamento teórico que explicasse essa mudança repentina de olhar para a questão homossexual. A perseguição aos homossexuais nos anos 30 e 40, na URSS e nos países ocidentais, foi uma das formas de restauração da família patriarcal.

A questão da homossexualidade nos interessa pois, em todas as resistências à reconhecê-la como um direito fundamental a constar em qualquer programa comunista, se revela mais uma manifestação persistente da vontade, consciente ou não, de perpetuar a família tradicional como base de reprodução ideológica de um sistema baseado na opressão da mulher, o patriarcado.

Os desmontes promovidos pelo sucessor de Lênin não pararam por aí: o aborto foi recriminalizado, a produção de obras que fizessem apologia ao “homossexualismo” foi censurada e, em 1952, a segunda edição da Grande enciclopédia soviética definia a condição como “perversão sexual”, “criminoso” e “vergonhoso”. Stálin contradizia até mesmo seu próprio discurso proferido em 1934 no XVII Congresso do Partido: “Qualquer leninista sabe, se for um leninista genuíno, que o nivelamento no âmbito das necessidades e da vida pessoal cotidiana é um absurdo reacionário digno de alguma seita primitiva de ascetas, e não de um estado socialista organizado de forma Marxista, pois não se pode exigir que todas as pessoas devam ter necessidades e gostos idênticos, que todas as pessoas vivam suas vidas diárias de acordo com um único modelo (…). Concluir que o socialismo requer o igualitarismo, a equalização e o nivelamento das necessidades dos membros da sociedade, o nivelamento de seus gostos e vidas pessoais, que de acordo com o Marxismo todos devem usar roupas idênticas e comer a mesma quantidade de um só e mesmo prato, é equivalente a proferir banalidades e caluniar o Marxismo”.

As experiências socialistas que eclodiriam posteriormente carregaram consigo essa noção contraditória de encarar a homossexualidade como pecado, crime e vergonha. Em Cuba — longe das invenções já desmentidas de que gays eram fuzilados ou colocados em campos de concentração por causa de sua sexualidade — não era fácil ser LGBT durante os anos que se seguiram à revolução. Em algumas UMAPs (Unidades de Monitoramento a Produção) que recrutavam obrigatoriamente homens em idade de serviço militar para exercerem diversos tipos de trabalho, homossexuais eram ridicularizados e até mesmo isolados dos demais. Mariela Castro, filha de um dos líderes da Revolução, Raul Castro, se tornou ativista pelos direitos LGBT e lembra com pesar daquela época, que incluiu, até mesmo, um período chamado de “Quinquênio Cinza”: “Os homossexuais não podiam trabalhar com educação ou cultura porque consideravam, de forma arbitrária, que seriam maus exemplos para crianças e alunos e que era necessário afastá-los da juventude (…) Foi uma experiência muito dura para eles. Imagine o caso de uma pessoa que desejava ser professor, por vocação, mas seu acesso a esse mundo era proibido por conta do sectarismo, da intolerância de alguns dirigentes e burocratas.”

Quando o neoliberalismo começou a ganhar força ao redor do mundo e se tornar a principal base de estruturação do sistema capitalista, seus beneficiários passaram a entender que, se quisessem lucrar ainda mais e conseguir adeptos dos mais diversos nichos sociais, deveriam começar a se mostrar inclusivos. Devemos lembrar também que “representatividade” dentro do sistema capitalista, em sua maioria, é superficial e simbólica: não basta pensar que a inclusão de negros, mulheres e LGBTs na mídia ou política, por exemplo, terá alguma efetividade profunda para a alteração do sistema, já que, na maioria das vezes, essas pessoas irão reproduzir as lógicas do ambiente em que estão inseridas, e, enquanto alcançam lugares de poder, o fazem às custas da exploração de seus semelhantes.

A eles, é interessante que o proletariado deixe de reconhecer sua unidade como classe trabalhadora para que suas lutas permaneçam no caráter identitário. Isso obviamente não quer dizer que não possuem importância, já que, dentro da institucionalidade, os movimentos LGBT, feministas e negros, por exemplo, precisam se organizar para lutar por demandas urgentes que se relacionam com a garantia de seus direitos e sua sobrevivência, principalmente sob regimes autoritários e conservadores. Mas a compreensão deve ser a de que não adianta que essas lutas sejam descoladas do caráter de classe e não interseccionadas com todas as outras, ou seja, se não reivindicar, ao mesmo tempo, a luta pela destruição do sistema capitalista, irá se limitar a uma institucionalidade que, nem hoje nem nunca, irá ser seu aliado: só continuará alimentando sua opressão em nome da acumulação infinita de capital.

EM BREVE A PARTE 2 SERÁ PUBLICADA, FIQUE ATENTE!

Sobre subvertacomunica (83 artigos)
Organização Política Ecossocialista que atua para transformar o mundo, acabar com todo tipo de exploração, opressão e destruição do planeta!

Deixe um comentário