Um outro mundo é possível? Um chamado para a LUTA!
Certamente uma criança já chegou em você e fez aquela tão incômoda e incessante pergunta: “por que?”. E ela nos incomoda porque nos tira da zona de conforto de não questionar mais o rumo e a razão das coisas. Mas, ao contrário do que o senso comum faz parecer, estar na zona de conforto, precisamente numa sociedade desigual, é se acomodar, não na sua paz, mas nas custas da paz dos outros. É no diálogo com as crianças que se desnudam as nossas principais inseguranças, inquietações e hipocrisias. Pensamos constantemente que o mundo está dado, a realidade é esta que está posta e apenas seguimos a maré. Não por cumplicidade, mas porque tudo e todos se encontram impotentes diante das situações de injustiça.
Como é o descarte do seu lixo? Há provavelmente algum aterro a céu aberto onde as pessoas do seu bairro dispõem o lixo sem qualquer critério de separação de lixo orgânico do reciclável? E os coletores, usam máscara? Equipamento adequado? Essas pessoas são negras? Você sabe se elas são bem remuneradas? Quando você passa pela rua a caminho do trabalho você encontra cães e pessoas revirando os lixos, dormindo na calçada? Sem amparo e, quando não faz alguma doação de solidariedade, nada pode fazer? Você sabe que tem algo de muito errado nisso tudo.
Tendo em pauta o Projeto de Lei 726/2021 na Assembleia Legislativa de São Paulo, o Padre Júlio Lancellotti comentou: “[…] Tem uma palavra chave em tudo isso. Temos que ser capazes de conviver com todos. Temos que desconstruir a ‘aporofobia’ que está dentro de nós.” (sic) [1]. Esse termo designa aversão às pessoas pobres. Mas a aporofobia é o sintoma, não a causa, padre. O nome da doença é capitalismo, cujo sistema devora mundos.
Estamos falando de um sistema capaz de implantar e manipular um “abismo cognitivo” nas pessoas; uma forma de induzir nossas mentes à incapacidade de conectar as coisas. Você pode ver bem na sua frente um pedaço de carne e ainda assim dissociá-lo do animal que um dia foi. As crianças, por exemplo, crescem acreditando que o leite nasce em caixinhas de supermercado, ou mesmo nós, adultes, acreditamos precisar de proteína animal para obtermos todos os aminoácidos essenciais para sermos saudáveis.
Essa alienação da procedência do que consumimos é arraigado no próprio modelo de produção atual que é baseado no “fordismo”, um sistema de produção industrial em massa que tem como objetivo produzir muito; onde você pode simplesmente consumir, ainda que você não precise. Há estímulos visuais constantes que criam no imaginário popular a (falsa) necessidade de ter para ser. Se por um lado se torna verdade nessa sociedade consumista que o status social alimenta uma hierarquia do ser, a igualdade social precisa vir da redistribuição igualitária de recursos essenciais à vida, gerando autonomia e dignidade. Se hoje não temos acessibilidade a alimentos livres de agrotóxicos e com uma ética antiespecista – que não envolva animais não-humanos em seus sistemas de produção – deve-se à concentração de bens, que culmina da propriedade privada dos meios de produção, como as terras.
No ciclo da expansão agrícola, a criação de gado abre fronteiras, regulariza a terra e depois cede espaço às monoculturas, para depois avançar sobre outras áreas das florestas. O garimpo – tráfico e exploração de recursos da natureza em nome do lucro – junto da grilagem, são algumas das facetas que o agronegócio utiliza para manter a concentração de terras e o poder dos senhores rurais. Afinal, “quando a carne é a protagonista do prato, os ruralistas são os protagonistas no campo”, nos alerta a anarquista, vegana e militante pela Palestina Livre, Sandra Guimarães, fala essa dita no encontro com entidades, ativistas e militantes veganes em 2022 com o ex-Presidente Lula. [2]
Já segundo Juliana Lourenço, jornalista e indígena do povo Kariri, grilagem é a invasão, ocupação e comércio ilegal de áreas pertencentes à União. O grileiro tenta forjar a titularidade da terra com documentos falsos para dizer que está ali há tempos. O nome “grilagem” vem do método de colocar grilos na gaveta onde o papel fica amarelado e envelhecido para insinuar a veracidade do documento. Desmatar áreas invadidas para a criação de gado fazia com que fosse requerida a documentação legal de posse daquele terreno, então populações locais não-alfabetizadas eram facilmente manipuladas por não terem bagagem o suficiente para lidar por meios jurídicos.
Tamanha a importância da alfabetização, ela é uma prática criadora na qual a pessoa aprende criticamente a ler, a escrever e também a aprender, tornando-se agente ativo de sua aprendizagem. Quando a educação é libertadora, somos tensionades a ler e interpretar o mundo segundo nossas ambições de querer mudá-lo em vez de se conformar com suas injustiças. A exemplo de alfabetização e ecologia, pensemos em Chico Mendes, ambientalista, seringueiro e comunista brasileiro, que teve como sua principal e mais notável criação as reservas extrativistas e diversas unidades de conservação de áreas florestais. Chico também criou o Projeto Seringueiro de alfabetização de moradores em comunidades isoladas nas matas; e a Aliança dos Povos da Floresta, que reuniu numa mesma causa populações distintas como seringueiros, indígenas e ribeirinhos.
Pensemos também na Carolina Maria de Jesus, mulher negra, favelada, catadora de recicláveis e escritora. Foi uma mulher marcada pela violência do Estado racista e machista que segrega as populações em maior vulnerabilidade social, relegando-as a empregos invisíveis, informais e em condições desumanas. Vera Eunice de Jesus Lima, sua filha, diz em entrevista que a mãe estudou apenas até o primário e praticamente aprendeu a ler sozinha, porque ela lia de tudo. [3] Ainda na entrevista, Vera diz que o maior sonho de sua mãe era que ela, sua filha, se tornasse professora. Hoje temos um alento em nossos corações ao saber que Vera é professora em uma rede de ensino público e tem a possibilidade de levar a alfabetização crítica a jovens.
Assim, vemos a necessidade de unir os povos do campo, da cidade e da floresta com o intuito de criar o poder popular. O Movimento LUTA (Movimento de Luta dos Territórios por Agroecologia e Poder Popular) é um movimento social que constrói, com participação popular, territórios coletivos e ecológicos, por meio da autogestão e da soberania alimentar.
Mais do que sobreviver, o povo quer bem-viver: uma cosmovisão e uma prática de cuidados com a terra e de preservação da vida que entende que todos os seres vivos são parte da natureza, e não algo apartado dela.
Lutar por soberania alimentar é devolver simbolicamente e materialmente a autonomia da própria vida, pois só quem viveu a fome – e vive no desgoverno Bolsonaro – é quem sabe que o capitalismo falhou, falha e falhará. Comer é um ato político, porque a fome é uma política. A concentração de terras pelos latifundiários não sana a fome, porque sua política é de exportação e valoração em bolsas de mercado no exterior. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos que consumimos – prática que verdadeiramente põe comida na mesa da população brasileira, segundo dados do IBGE. [4]
O veganismo de caráter popular vem como alternativa a esse modelo de produção que subjuga seres em nome do lucro. O veganismo popular incorpora questões sociais, éticas e ambientais em seu modo de pensar a produção. A luta contra a emergência climática passa por gerar o menor impacto socioambiental possível se quisermos que haja século vinte e dois. Também é ecossocialismo ou extinção!
Enfim, outro mundo é possível? Espero ter feito você refletir a possibilidade de encontrar nesses relatos suas lacunas e buscar de maneira autônoma e consciente o que fazer a respeito. Se eu acredito que outro mundo é possível? Não o mundo dos bunkers (bases subterrâneas) ou das viagens espaciais na tentativa de colonizar outro planeta. Mas um mundo livre de classes sociais. Onde a fome – que são os que comem que a criam, como sabiamente afirma Carolina Maria de Jesus – seja tão menos que uma mera lembrança amarga causada pelo sistema capitalista, cujo sistema tornaremos obsoleto. Para isso, precisamos nos organizar politicamente contra todas as opressões. Vamos juntes à LUTA?!
Referências:
[1] Tem mais casa sem gente do que gente sem casa em São Paulo, afirma padre Júlio. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2022/05/24/tem-mais-casa-sem-gente-do-que-gente-sem-casa-em-sao-paulo-afirma-padre-julio> Acesso em: 06 de jun. de 2022
[2] Sandra Guimarães participa de encontro com o ex-Presidente Lula em nome da União Vegana de Ativismo (UVA) <https://www.instagram.com/p/CbK2OFerJqW/?igshid=YmMyMTA2M2Y=> Acesso em: 06 de jun. de 2022
[3] Carolina Maria de Jesus: filha sobre a vida e obra da escritora <https://youtu.be/qRjDmmWAFEo> Acesso em: 6 jun. de 2022
[4] Quem produz os alimentos que chegam à mesa do brasileiro?
<http://www.asbraer.org.br/index.php/rede-de-noticias/item/3510-quem-produz-os-alimentos-que-chegam-a-mesa-do-brasileiro#:~:text=Quando%20se%20consideram%20alimentos%20consumidos,%2C%20milho%2C%20leite%2C%20batata> Acesso em: 11 de jun. de 2022
[5] O que é agroecologia? Por Educa Periferia
<https://youtu.be/QFrNNj9RM5o> Acesso em: 11 de jun. de 2022
Indicações:
MENDES, Chico. Chico Mendes: Por ele mesmo. Editora Martin Claret, 2006.
ANTAR Vegan e União Vegana de Ativismo. Antiespecistas: o manual do veganismo popular e revolucionário. Editora Terra Sem Amos, 2021.
FERNANDES, Sabrina. Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa. Editora Planeta 2020.
Deixe um comentário