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Apoiar o movimento indígena: tarefa essencial para os ecossocialistas e para a esquerda brasileira

Card com foto no centro da imagem. A foto mostra uma marcha, em larga avenida asfaltada, com indígenas carregando faixa com a frase

“O Futuro é Indígena”
Faixa exibida em ato durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2022

Abre-se mais um mês de Abril, momento central para o calendário das mobilizações indígenas. Para muito além do “dia do Índio”, em Abril os povos indígenas constroem o Acampamento Terra Livre, evento máximo de organização, denúncia e formulação teórico-política do movimento. É momento de festa e de guerra, par que os povos indígenas sabem muito bem conjugar. Duas questões principais se colocam para ATL de 2022: a luta contra a política anti-indígena de Bolsonaro e da burguesia brasileira, expressa no Judicário no julgamento do Marco Temporal e na Câmara na proposta de mineração em Terras Indígenas; e as articulações do movimento para o ano de 2022, um ano de mobilizações, mas também de eleições burguesas.

Tanto a esquerda moderada quanto a radical tendem a apoiar essas movimentações, mas a maioria de suas forças o fazem em abstrato. Os povos indígenas estão presentes em suas falas e a importância de seus direitos e territórios é sempre reiterada, mas concretamente figuram pouco em suas elaborações teóricas, em seus programas e em suas atuações cotidianas. Trata-se quase de um ponto cego, que muitas vezes deixa povos indígenas sem opção além da direita ou da extrema-direita. A visão média que se mantém parece ser aquela já mofada, de que esses povos são dignos de suas vidas, de seus territórios e de seus direitos, mas que não representam forças centrais para a transformação do Brasil, que seriam povos presos no tempo, pertencentes ao passado, sem capacidade de formulação do futuro.

Essa posição, é claro, é falsa, e está erigida nos diversos apagamentos históricos que conformam a história oficial brasileira, assim como numa insistência histórica em ignorar as especificidades da formação social do nosso país e dos nossos movimentos sociais. É preciso lutar contra essa posição em toda a esquerda, mas, especialmente, é necessário que ela não se reproduza entre ecossocialistas.

Aqui não é nossa intenção fazer uma retomada aprofundada desses apagamentos, que necessitaria incluir a presença indígena no que é hoje o território brasileiro desde 15 mil anos atrás; nas formas específicas de seu desenvolvimento econômico-social; e no seu papel ecológico como formadores dos biomas (na realidade sócio-biomas) brasileiros, para além de uma revisão dos processos coloniais e pós-coloniais. Nem se trata de um debate sobre a articulação histórica de um Marxismo Indígena e Indigenista, que embora urgente para a discussão, trataria-se já de um aprofundamento. Cabe, a título de introdução ao debate, pincelar momentos históricos da atuação política indígena pós-invasão europeia, em especial o pulso mais recente do movimento, que se inicia na segunda metade do século XX; apresentar os desafios atuais do movimento e a relação destes com a luta ecossocialista, para então esboçar tarefas importantes para o fortalecimento dos povos indígenas em 2022.

Desde as primeiras décadas da invasão europeia, os povos indígenas organizam movimentos de resistência contra o roubo e destruição de seus territórios e o genocídio em curso. De Norte a Sul das colônias portuguesas em Pindorama, levantes como a Confederação dos Tamoios no atual sudeste brasileiro já no século XVI à Guerra dos Manaus liderada por Ajuricaba na Amazônia setecentista mostram que mesmo perdurando a agressão, escravização e cooptação europeia e os terríveis surtos de doenças trazidos por estes, os povos indígenas foram capazes de lutar bravamente por suas terras e modos de vida. Já no início do período independente os povos indígenas continuam a ser protagonistas nas Revoluções vencidas do século XIX, no 2 de Julho baiano, na Cabanagem, na Balaiada, na Revolução Praieira, ajudando a forjar nessas lutas alianças pretas, indígenas e populares. Enquanto isso, o Estado brasileiro conforma-se negando aos indígenas os direitos mais básicos, inclusive o direito à vida, ou caracterizando-os como incapazes, dignos apenas de tutela. Para isso busca homogeneizá-los, ou seja, transformar a diversidade indígena composta de milhares de povos falando centenas de línguas distintas e com características culturais particulares, em um indígena genérico, sem traços distintivos.

Após séculos de resistência e transformações, a forma contemporânea do movimento indígena brasileiro em território nacional se estabelece durante a ditadura empresarial-militar (1964-1984) e contra o regime que aprofundou o genocídio em curso, em eventos atrozes como o massacre aos Waimiri-Atroari na construção da BR-174 e a criação de campos de concentração de indígenas. Na realização de Assembleias Indígenas e na luta, novamente em aliança indígena (e indigenista), preta e popular, contra as tentativas da ditadura de empurrar sua integração forçada à “sociedade nacional”, os povos indígenas se organizam e emergem como uma das forças na vanguarda do movimento que derrubará os milicos do poder. O reconhecimento de seus direitos na Constituição de 1988 é a cristalização jurídica do processo de luta e formação de alianças realizadas pelo movimento indígena, que contou com lideranças históricas como Ailton Krenak e Mário Juruna. Assim os povos reconhecem sua luta comum, sem nela apagar suas diferenças culturais. O processo, por sua vez, transforma os povos indígenas em grandes defensores dos aspectos progressivos da Constituição de 1988 e até hoje pode-se ver em seus atos, indígenas empunhando o documento. A razão disso é que jamais cessaram, nas décadas seguintes, ataques aquilo que foi aprovado.

Nesse período cada hectare demarcado, cada direito conquistado não o foi sem incansável luta e sem a ameaça permanente de perda daquilo pelo que tantos parentes morreram lutando por. É dessa luta que nasce a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o próprio ATL, cuja primeira edição ocorre em 2004. Mesmo os governos petistas foram repletos de contradições em relação às lutas indígenas. Se algumas políticas de reconhecimento foram implantadas, como as cotas universitárias, por outro lado, a demarcação de terras estancou e violações de direitos, como na implantação da Usina de Belo Monte, se repetiram.

Mas a situação se torna crítica a partir do golpe parlamentar em 2016. O Estado brasileiro retoma a ofensiva aos povos indígenas que é agravada com a fraudulenta chegada de Bolsonaro ao poder. Nos últimos anos se agrava o aparelhamento mais vil da FUNAI que passa pelas mãos seja de militares abertamente anti-indígenas, seja pastores sedentos com a conversão de indígenas em isolamento voluntário. Estimulou-se todo tipo de racismo anti-indígena, com falas diretas do presidente, vice-presidente e seus ministros quanto a isso. Mas, principalmente, se dirige a ofensiva aos próprios territórios indígenas, alvos da fome insaciável da burguesia. O governo Bolsonaro busca pelo Congresso passar toda legislação que enfrequeça o usufruto indígena de seus territórios, mas, para além do Legislativo (e da legalidade), incentiva cotidianamente a invasão de terras indígenas, por grileiros, por madeireiros, por pastores, pelo garimpo. Esse último configura uma espécie de milícia anti-indígena, pró-Bolsonaro e cada vez mais articulada pelo crime organizado. A tentativa de liberar a mineração em terras indígenas é só o mais um novo ataque de uma guerra que parece sem fim.

Os territórios e corpos indígenas não são alvos à toa. Em seus territórios impera outra lógica de propriedade que não a capitalista, em seus corpos florescem outras formas de ser, de se organizar politica e economicamente, de se relacionar com a terra e com todos os seus habitantes. Há uma outra valorização: da comunidade, da abundância, da fruição, da diversidade, em síntese, do Bem Viver; radicalmente distinta da valorização do valor, do lucro acima de tudo e todos, que comanda concreta e ideologicamente o mundo capitalista. Na relação com a Natureza essa diferença não poderia ser mais nítida. Os modos de vida dos povos indígenas são essenciais para a produção e reprodução dos biomas brasileiros e seus conhecimentos são chaves para qualquer plano de transição agroecológica. Enquanto isso, no Brasil e no mundo, a burguesia, como classe dominante, dirige o planeta aceleradamente em direção a um cataclisma ecológico, rompendo o metabolismo socio-natural que nossa espécie desenvolveu com a Terra ao impor um sistema de acumulação infinita a um ecossistema de capacidades finitas. Não se trata de uma diferença supra-histórica ou de ver os indígenas como seres celestiais. A diferença, na realidade, é precisamente oriunda de uma história milenar indígena, de manejo das florestas e ampliação de sua biodiversidade, de um mutualismo metabólico, que, por sua vez, legaram aos povos indígenas do território brasileiro maior autonomia, cuja base material é a própria abundância descentralizada presente nas florestas. E é essa diferença, afinidade negativa entre ética indígena e espírito do capitalismo, como colocou Michael Löwy, que coloca povos indígenas e o Capital inevitavelmente em guerra, uma guerra que só pode acabar com o fim de um ou outro lado.

É nessa afinidade negativa e na afirmação de um modo de vida ecocêntrico e radicalmente alternativo ao capitalismo que se encontram os principais laços que aproximam povos indígenas e ecossocialistas. É nossa visão estratégica que o bloco histórico revolucionário que abrirá um período de transição ecossocialista, rumo a uma sociedade do Bem Viver, só pode existir se nele estiverem os povos indígenas em movimento. Agora em aliança indígena, preta, popular e ecossocialista.Vemos a demarcação das terras indígenas e a ampliação dos direitos dos povos sobre elas como elementos primários de reparação histórica com os povos indígenas, mas também como golpes contra o latifúndio e sementes para florescer uma reforma agrária agroecológica. É também nossa visão que o protagonismo teórico-político indígena é essencial para derrotar o desenvolvimentismo, o produtivismo e o extrativismo que contaminam com uma lógica colonialista os projetos da esquerda em toda a América Latina.

Os primeiros passos dessa aliança indígena e ecossocialista já foram dados. Diria Michael Löwy que ela existe desde Chico Mendes e a Aliança dos Povos da Floresta, passando pelo Fórum Social Mundial de Belém em 2009 e saltando qualitativamente em 2018 no lançamento da candidatura de Sônia Guajajara, coordenadora da APIB e liderança indiscutível do movimento, à vice-presidência da República junto a Guilherme Boulos, movimento encampado pelo Subverta e pela Setorial Ecossocialista do PSOL.

Essa aliança precisa avançar. Para fazer frente a ofensiva, os povos indígenas se reorganizam e se preparam, tendo como ferramentas organizativas principais suas coordenações regionais, a APIB, assim como a recém-fundada Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). Conformam hoje um dos movimentos sociais mais avançados em termos organizativos, com alta capacidade de mobilização nacional e articulação internacional. Estão constantemente na vanguarda da luta contra os retrocessos da aliança liberal-facista no poder. São pontas de flecha no calcanhar de todos os nossos inimigos de classe. O programa que defendem é de extrema radicalidade, justamente por se contrapôr a própria raiz do sistema que vivemos. O movimento vem também progressivamente se atentando a centralidade da luta das mulheres indígenas, que hoje ocupam a posição de principais articuladoras. O formato de Articulação permitiu ao movimento grande capilaridade entre os povos indígenas, e, ao mesmo tempo, uma coordenação geral para sua atuação. Além disso, os povos indígenas deliberam pela organização de Retomadas territoriais e pela ocupação de lugares de poder que por séculos fecharam suas portas para indígenas. Hoje é Eloy Terena que defende juridicamente pautas importantes do movimento, é Ailton Krenak que dá palestras por universidades do Brasil e do mundo, é Joênia Wapichana que defende os direitos indígenas no Congresso.

Em 2022, a luta é pelo fortalecimento desses movimentos frente ao aumento dos ataques aos territórios. Coordenam em Abril, um ATL que espera-se seja maior que o do ano passado, que reuniu 6 mil pessoas, na maior mobilização indígena desde a promulgação da CF/88. Organizam um calendário de ações para barrar retrocessos. Decidem pelo lançamento de candidaturas por todo o Brasil fazendo um Chamado pela Terra, que tem como intuito ocupar as câmaras legislativas estaduais, mas também criar a Bancada do Cocar no Congresso Federal para enfrentar a Bancada do Boi.

Na política institucional, e fora dela, o PSOL é o partido que nacionalmente mais se aproximou do movimento no último período. A bancada do PSOL tem um papel importante na luta pelos direitos indígenas na Câmara Legislativa, assim como regularmente recorre ao Judiciário para denunciar movimentações anti-indígenas em plano nacional. Nas ruas, nos colocamos ao lado dos povos indígenas em suas lutas e reinvindicações. Essa aliança que se consolida progressivamente permitiu uma significativa aproximação entre PSOL e APIB e fez com que grandes lideranças e intelectuais indígenas como Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Kerexu, e, mais recentemente, Eloy Terena (além de muitas outras), tenham sentido confiança pra se integrar ao partido. Por sua vez, o PSOL estabelece em seu diálogo com a candidatura de Lula que a demarcação de terras indígenas é condição inegociável para o apoio do partido a campanha. No último congresso do PSOL, o partido teve outro acerto nesse sentido, a aprovação consensual de uma resolução específica sobre as lutas indígenas, construída junto a parentes no partido, que em seu conteúdo abre espaço para a criação de uma Setorial Indígena, espaço de auto-organização do movimento no PSOL. A semente dessa setorial está sendo cultivada através da Articulação Indígena no PSOL, grupo composto por lideranças indígenas e aliades no partido.

O Subverta desde seu início como organização participa ativamente desse processo. Em 2018, estivemos na articulação da candidatura de Sônia Guajajara, nos anos seguintes nos dedicamos a construções territoriais em terras indígenas, e em 2021, no III Encontro Nacional do Subverta, a organização decidiu pela criação de um Grupo de Trabalho específico para acompanhamento e articulação com o movimento, o GT de Lutas Indígenas, que nasce de debates feitos com camaradas indígenas que participam ou que participaram da organização. Em 2022, o nosso objetivo é fortalecer o movimento nas aldeias, no partido, nas ruas e nas urnas, além de somar no ATL, fortalecer a Articulação Indígena no PSOL e atender ao Chamado pela Terra, atuando por candidaturas indígenas.

Mas esse deve ser um movimento de todo o PSOL, e, além dele, de toda a esquerda. No PSOL é necessário uma ampla mobilização para consolidar um espaço político interno dos povos indígenas, de onde suas demandas podem ser formuladas e defendidas. É preciso também garantir presença e protagonismo indígena na formulação programática do partido a ser defendida nacionalmente. Nas Frentes que construímos, é necessário garantir que lideranças indígenas participem da organização das mobilizações e que suas demandas também sejam palavras de ordem. Nas eleições, temos que assegurar fundos adequados para campanhas indígenas e firmar pactos estaduais entre as forças do partido para que disputas internas não contaminem a construção dessas candidaturas. O PSOL deve ser o partido escolhido pelo movimento indígena para avançar sua luta.

As lideranças indígenas pedem apoio, mas é preciso ouví-las, construir com elas o ecossocialismo, sem buscar tutelá-las. É preciso dialogar com intelectuais indígenas, levando a sério suas contribuições teóricas e práticas. É preciso fazer política com os povos indígenas não só em alguns atos ao ano, mas constantemente nas aldeias, nas Retomadas e Acampamentos. Em 2022 é preciso dar apoio máximo às ações do movimento indígena e às candidaturas indígenas. É preciso mostrar os caminhos do sistema político atual dos brancos, mas também denunciar seus limites e a importância da luta revolucionária contra o fim do mundo. Acima de tudo, é preciso aprender com os povos indígenas para que também aldeiemos nossa política, reflorestemos nossas mentes e consigamos dar um conteúdo verdadeiramente novo, e ao mesmo tempo ancestral, para o novo mundo que buscamos parir desse mundo velho.

E assim saudamos mais um Acampamento Terra Livre! Que Brasília se encha da cabeça aos pés de urucum e jenipapo para que possamos, em 2022, escorrer dela todo o verde-oliva! Bora Retomar o Brasil!

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