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Coronelismo, milícia, terra e voto – parte 1

Por Danilo George Ribeiro*

“O elemento primário desse tipo de liderança é o coronel, que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras. Dentro da esfera própria de influência, o coronel como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos. Também se enfeixam em suas mãos, com ou sem caráter social, extensas funções policiais, de que frequentemente se desincumbe com a sua pura ascendência social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o auxílio de empregados, agregados ou capangas”.

(“Coronelismo, Enxada e voto”. LEAL [1949], 2012, p.24).

A primeira epígrafe acima retrata a descrição do coronelismo, fenômeno social da Primeira República (1889-1930). No entanto, parece descrever a atuação contemporânea de um clã político tradicional no Rio de Janeiro atual, a família Brazão, no qual dois irmãos desse grupo foram indiciados como mandantes da execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. A trajetória política do poderoso clã revela seu enraizamento e atuação na zona oeste, última fronteira agrícola do município, conhecida até a década de 1950 como o “sertão” carioca. A família possui como reduto eleitoral favelas e territórios populares nessa região, dominadas pelas “milícias” pelo menos desde o final da década de 1990.

O coronelismo foi um poder que se articulou entre o Estado, sobretudo em instâncias municipais onde se regulava as atividades de ocupação, uso e parcelamento do solo, e a dominação social dos coronéis locais, notadamente dos grandes grileiros de terras. Essa forma de gestão e regulação armada de todo o conjunto da vida social dos trabalhadores do campo se desenvolveu a partir da extensão do direito de sufrágio aos trabalhadores rurais no interior do país, excluindo os analfabetos, conquistada após lutas democratizantes que deram importância fundamental ao voto desses trabalhadores. Alterou-se, portanto, a influência política e eleitoral dos donos de terras, devido ao controle dessa parcela do eleitorado, consequência direta da nossa estrutura agrária, que mantinha os trabalhadores da roça em lamentável situação de exploração e pauperização.

Dessa maneira, a influência política dos coronéis passou a se estruturar através de ações clientelistas e supostas benfeitorias, ampliando-se para além das fronteiras da propriedade local e dos municípios, estendendo-se para as esferas estaduais e federal, transformando a figura do coronel em um elo importante entre os governadores e até o presidente da República. Em outras palavras, por meio do alcance territorial dessa parcela do eleitorado e da respectiva concentração de votos, o coronel detinha um importante quinhão, no qual se condensava o poder econômico, social e político através de clãs familiares e de seus aliados – a gênese do governismo e do fisiologismo ainda comuns nas ações do moderno “centrão” do qual fazem parte o poderoso clã Brazão.

Milícias e o amplo arco de Alianças

Parte das grandes alianças dos irmãos Brazão provém de relação com grandes figuras do mercado imobiliário, como Pasquale Mauro, considerado um dos maiores “grileiros” da zona oeste, que responde desde a década de 1970 por processos de corrupção e apropriação indevida de terras na zona oeste. A denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR), relata o caso da compra de imóveis, sob a posse suspeita de Pasquale. Este último, não por coincidência, foi condecorado com a Medalha Tiradentes, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), por iniciativa justamente de Domingos Inácio Brazão, isso ainda no ano de 2003.

No caso do Rio de Janeiro, a investigação acerca da formação do espaço urbano, demonstra que as alianças entre os agentes econômicos do mercado imobiliário e os governantes foram fundamentais para a abertura de novas frentes de acumulação. Na capital fluminense, a partir da eleição de Cesar Maia, em 1992, os agentes privados ganharam ainda mais notoriedade e respaldo para a determinação das políticas públicas, através de parcerias públicos-privadas. Cumprindo-se o receituário neoliberal e seus planos estratégicos. Nesse periódo regiões periféricas da zona oeste perdem características semi-rurais e transformam-se em novo canteiro de obras do município.A transformação dessa região nos anos 2000 a consolida como a área de fronteira de expropriação e acumulação, sobretudo através da expansão urbana induzida pela coligação especulação/planos municipais. Essa ressignificação de áreas envolveu intensa atividade de milícias, que se tornaram condições para a permanente valorização dos capitais e a consequente extração de rendas por parte do mercado imobiliário.

É importante destacar, que esse modo de governo – controle privado territorial, econômico, eleitoral e da violência privada e pública – ocorreu no passado e permanece no presente sob a forma republicana de Estado.Não se limitou á atuação de uma ditadura stricto sensu, embora ditaduras tenham sido legitimadoras e impulsionadoras desse processo. Esse elemento é fundamental para a superação da noção reducionista que entende as atuais milícias do Rio de Janeiro como um mero legado da ditadura empresarial-militar.  É isso, mas não é somente isso. Com o advento da chamada “redemocratização”, a renovada práxis paramilitar passa a coexistir com um regime político de extensa base representativa e sufrágio universal, conquistados após diversas lutas populares na década de 1980, que trazem novas formas de resistência ou consentimento aos grupos sociais subalternos, assegurando que nenhum governo ou grupo dominante possa prescindir dos votos da classe trabalhadora pauperizada e precarizada – moradora de favelas. O que exigiria a atualização das formas de convencimento e e violência. Segundo o defasado Censo de 2010 do Instituto Brasileito de Geografia e Estatística (IBGE), existem 763 favelas na cidade do Rio de Janeiro que abrigam 22% de toda a população do município1, o que faz da capital fluminense a cidade brasileira com o maior número de moradores em favelas. Ainda de acordo com o levantamento de 2010, seriam aproximadamente 2 milhões de habitantes nessas áreas com uma renda média mensal de R$ 965,00, representando mais de 30% do eleitorado carioca2. São nesses territórios e sob essa população que grupos armados atuam de forma coercitiva consolidando sua imposição eleitoral.

A parceria público-privado significou o monopólio de serviços públicos a grupos privados e, simultaneamente, garantiu a funcional desestruturação de políticas públicas. Portanto, não se pode reduzir o “coronelismo” nem o “milicianismo” atual a uma simples afirmação de funcionamento anormal do Estado, restrito à coerção aberta, mas sim uma forma de poder bastante funcional a determinados proprietários, políticos, policiais e empresários, articulado com sedimentação de consensos e com o consentimento do conjunto das classes dominantes.

A moderna prática dos milicianos possui um viés coronelista como demonstra a atuação da família Brazão na zona oeste do Rio de Janeiro. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), Domingos Inácio Brazão e João Francisco Inácio Brazão vêm atuando no arrendamento de terras, serviços e organizam alianças com diferentes grupos de milícias policiais, uma espécie de guarda pretoriana formada pelo clã ou sua aliada. O clã atua na regulação e legalização de serviços após o arrendamento dessas áreas. A atuação da família vem se ampliando desde o começo dos anos 2000, sobretudo, nas regiões de Oswaldo Cruz, Rio das Pedras e Jacarepaguá.

A condensação eleitoral

É de conhecimento comum que nos espaços territoriais controlados por milícias apenas os candidatos por elas apoiados são autorizados a realizar campanha eleitoral. Em contrapartida, os eleitos se comprometem a patrocinar os negócios dos grupos paramilitares junto às instituições de Estado, assegurando uma rede de troca de favores e interesses que ecoam práticas coronelistas. Na figura abaixo é possível observar a votação dos irmãos Brazão na favela de Rio das Pedras, um dos principais territórios controlado pelo clã e seus aliados milicianos.

Fonte: Relatório PGR-MANIFESTAÇÃO-527406/2024 , p.6

A metodologia de análise para caracterização desse modus coercitvo do eleitorado que no Rio de Janeiro se associa à prática miliciana se baseia em dados compilados pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) por zona eleitoral – uma delimitação geográfica estadual que geralmente coincide com as divisões judiciárias ou as comarcas do estado. Dentro de cada zona estão seus respectivos locais de votação, ou endereços onde são colocadas as urnas ou seções. Considerando a possibilidade de concentração de votos proveniente de coação e/ou clientelismo, analisa-se a concentração de votos por local. A relação desses números em termos percentuais representa a concentração de votos por locais, quando os índices apresentam uma concentração igual ou superior a 15%, o próprio TRE identifica e denomina uma prática de “curral eleitoral”.

Clãs familiares como os irmãos Brazão se retroalimentam da arcaica práxis do antigo “coronel”, um grande grileiro de terras que por meio da violência e por meio de outras conexões com o Estado arrenda diversos serviços e regula de forma armada todo o conjunto social de grupos subalternos, concentrando recursos,propiedades, poder e votos, ao mesmo tempo em que se transforma em um representante legítimo do Estado formal e que se apresenta como um benfeitor para determinado território.

Na 31º Reunião do Forúm permanente de segurana pública & execução penal, promovido pela Escola de Magistatura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), uma liderança comunitária que viveu sob a dominação do coturno paramilitar e do sapatênis político dos milicianos em área controlada pelo referido clã, relatou que a prisão dos irmãos Brazão trouxe comoção para alguns moradores, pois a família realizava também obras e ações sociais como meio de fidelizar o apoio, o consentimento e os votos da população da região. Trata-se de um sofisticado domínio que se articula com a produção ativa e passiva do consentimento social. Milicianos assim como os antigos coronéis fazem parte dos próprios instrumentos legais do Estado para extorquir, intimidar, perseguir, lucrar, apassivar, fidelizar e subjugar trabalhadores empobrecidos que antes estavam no campo, mas agora residem em favelas na cidade. Essas são bases materiais comuns de acumulação de capital entre essas formas de dominação. A primeira parte deste texto teve como objetivo central analisar a relação histórica do moderno miliciano que se retroalimenta da arcaica dominação coronelista, evidenciando que algumas práticas não são recentes, urbanas e indicam não serem restritas ao Rio de Janeiro. Trata-se de um quadro mais amplo, diverso e complexo da dominação de classe no Brasil. Mas não são idênticas as condições da década de 1940 e da atualidade, salvo pela intimidade entre classes dominantes, Estado e violência.

1https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/15700-dados-do-censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas-vivendo-em-favelas#:~:text=Segundo%20o%20Censo%202010%20do,cinco%2C%20eram%20moradores%20de%20favelas.

2https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/com-2-milhoes-de-moradores-favelas-do-rio-seriam-7-maior-cidade-do-pais.html

Danilo George Ribeiro é doutorando em história social pela UFF. Membro do Grupo de trabalho e orientação (GTO) coordenado pela professora Virgínia Fontes. Militante do PSOL-RJ e do Subverta.

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