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Conjuntura atual e tarefas políticas

Caos geopolítico internacional, golpe no Brasil e reconstrução da esquerda socialista. Leia a Resolução de Conjuntura do Subverta

RESOLUÇÃO de CONJUNTURA e PSOL 

Subverta – Coletivo Ecossocialista e Libertário

(27/03/2017)

Caos geopolítico internacional

  1. No ano em que se comemora cem anos do acontecimento de maior alcance emancipatório do século 20, o mundo parece mergulhar em uma nova virada histórica na qual ainda prevalece a incerteza. Se em 1917 a flor da revolução germinava em meio à barbárie da guerra imperialista, vemos, um.século depois, as experiências das promessas emancipatórias gestadas nos primeiros 15 anos do século 21 murcharem, confrontadas por uma onda conservadora, com aspectos protofascistas e extremamente bélicos. No entanto, é possível notar, mesmo que de forma latente, novos processos de mobilização popular que se expressam cada vez mais na escala global, que resistem ao avanço conservador, como a mobilização internacional em torno do 8 de março de 2017.
  2. A América Latina teve um papel importante no final dos anos 1990 por apontar caminhos alternativos ao neoliberalismo que marcou todo o período anterior desde 1973, com o golpe de Pinochet.  A luta contra a privatização da água e do gás na Bolívia, contra a entrada da ALCA no Brasil, a explosão social dos de baixo no Caracazo venezuelano, as mobilizações de jovens estudantes no Chile, as experiências de autogestão de empresas falidas por trabalhadores argentinos, dentre outras, apesar de suas especificidades, são marcos importantes na retomada das mobilizações populares no continente. Elas criaram as bases de contestação ideológica do neoliberalismo e, por outro lado, pavimentaram também o caminho para as vitórias institucionais de diversos governos progressistas de diferentes matizes em toda latinoamérica.
  3. Contudo, após dezessete anos de experiências eleitorais combinadas com mobilizações populares, na qual levaram lideranças populares a assumirem a presidência de seus respectivos países, devemos nos perguntar em que medida  se consolidou uma oposição real ao neoliberalismo no continente? Esse ciclo histórico  se esgotou? A incapacidade desses processos de levar adiante mudanças estruturais em nossas sociedades, de desalojar as classes dominantes de seus postos de comando, fizeram com que em menos de duas décadas o fôlego, tanto institucional quando social e ideológico desses processos, começasse a se exaurir.
  4. Porque essa onda “à esquerda” que em certo momento passou a avançar em boa parte do mundo perdeu força e parece ser substituída por uma contra ofensiva de direita? Apesar das especificidades de cada contexto e da complexidade desses processos, vemos alguns elementos genéricos comuns:
  5. Os movimentos sociais e emancipatórios foram imprensados dentro dos limites da ordem, e houve um recuo estratégico no qual se esvaziou o conteúdo classista e se afastou do horizonte a revolução socialista, lutando por reformas dentro da ordem e do estado; mesmo os processos que foram mais longe, que pensamos ser o caso da Bolívia, da Venezuela e do Equador não conseguiram ultrapassar essas barreiras.
  6. Essa “onda progressista” não conseguiu superar a lógica desenvolvimentista ou neodesenvolvimentista, tampouco promoveu uma transição para a ruptura com a reprodução do capital. Não atuaram na rota de atenuar o modelo primário exportador e quando os preços das commodities caíram revelou-se a dependência estrutural de nossas sociedades.Temos a convicção de que a análise crítica desses elementos  pode nos ajudar, para que as próximas vitórias possam ser mais perenes e mais carregadas de conteúdo emancipatório.
  7. Uma marca importante dos governos que alguns convencionaram chamar de “progressistas” foi que, em maior ou menor grau, optaram por uma estratégia baseada na conciliação de classes. Mesmo que não tenham se confundido inteiramente com as classes dominantes e em alguns casos até mesmo tenham buscado confrontar alguns de seus segmentos, não conseguiram avançar em uma agenda de reformas estruturais capaz de tornar nossas sociedades menos dependentes  no que diz respeito a divisão internacional do trabalho, e mais igualitárias do ponto de vista socioeconômico. Mesmo nos governos de Chávez e Morales que poderiam se destacar daí, havia uma distância significativa entre a retórica socialista e as medidas de reformas estruturais que tomaram, que em muito casos foram muito mais efetivas do que na maioria dos outros governos da América do Sul.
  8. A outra face do problema da conciliação de classes é a desestruturação das redes e movimentos autônomos de mobilização popular. Como na luta de classes se opera com interesses antagônicos, a viabilização de um pacto de classes só é possível através do regime de representação institucional e está ancorada no crescimento econômico. Dessa maneira o que se viu foram governos que chegaram ao poder sustentados por lutas e movimentos populares relativamente autônomos e que pouco a pouco foram tendo sua dinâmica associada aos interesses governamentais, de modo que a defesa do governo se tornou o meio garantidor da possibilidade de vitórias nas lutas. Essa crescente institucionalização dos movimentos deu origem a um amplo processo de apassivamento da classe ancorado na burocratização, no esvaziamento do trabalho de base e na diminuição da capacidade de mobilização, gerando um anestesiamento da ação de massas independente.
  9. Esse processo combinado de governos de origem de esquerda terem optado pela conciliação de classes e de desestruturação das redes e movimentos autônomos teve uma consequência não menos grave, o rebaixamento programático e o esvaziamento da perspectiva utópica. O nível de realismo exigido para viabilizar políticas que possam contemplar o capital de um lado e os direitos sociais de outro atuam como uma bigorna achatando todo conteúdo emancipatório e as propostas de reformas estruturais. Foi impressionante como nos governos latinoamericanos, por exemplo, foram abandonados os referenciais teóricos da esquerda crítica do continente em relação à dinâmica do imperialismo e da dependência estrutural, ao caráter autocrático de nossas classes dominantes, aprofundando entre outros aspectos nossa inserção internacional primário-exportadora. O combate à pobreza extrema seguiu no geral a cartilha do Banco Mundial e o aumento da renda e do crédito aos trabalhadores  não conseguiu fugir da estrita dinâmica do mercado e do consumo. É necessário reconhecer que tais políticas tiveram efeitos concretos e imediatos na vida de milhões de pessoas, mas por não terem se desenvolvido no bojo de reformas mais estruturais e estruturantes e nem estarem vinculadas a processos de organização popular tendem a viver o seu ocaso junto dos seus formuladores. 
  10. A crise aberta a partir de 2008, com seu caráter mundial, foi o ingrediente principal de todo esse processo de reconfiguração. A partir dela se revelaram com mais nitidez as fraturas civilizatórias, ecológicas e sociais que foram sendo erigidas ao longo do processo de desenvolvimento do capitalismo. Vivemos a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial e um contingente de milhões de refugiados arrisca a sobrevivência vagando pelo mundo. O desemprego e os subemprego se multiplicam aos milhões. A extensão e a profundidade desta crise podem ter significado o esgotamento mais amplo, tanto do ponto de vista político como econômico, do regime de acumulação em nível global. A orientação geral da política de Trump de por os EUA em primeiro lugar, no sentido da busca de um novo desenvolvimento endógeno do país, conforme se confirme, pode trazer elementos para compreendermos melhor para onde o mundo caminha.
  11. O encerramento desse ciclo parece dar lugar a um amplo processo de reorganização da geopolítica mundial. O signo que parece dominar essa reorganização é o da contrarevolução. Abre-se aparentemente uma conjuntura regressiva para as lutas sociais que deparar-se-ão com uma ofensiva conservadora em nível mundial. A vitória de Trump, o Brexit, e as guerras que ocuparam o lugar das mobilizações da Primavera Árabe são alguns acontecimentos que simbolizam esse cenário de retrocesso. É necessário acompanhar o desenvolvimento dessa tendência, mas parece que vivemos também um período de retomada dos nacionalismos, no qual as movimentações do governo estadunidense também poderão ter consequências importantes caso o programa estratégico de Trump se viabilize.
  12. Por outro lado, as frações políticas e econômicas que encabeçam essa ofensiva conservadora têm alto nível de rejeição e contestação tanto em nível nacional como internacional. Este não é um aspecto de menor relevância, pois a resultante dos enfrentamentos entre esse pólo conservador e os setores que se organizam para derrotá-lo ainda não está definida. A mobilização convocada pelas mulheres e que tiveram grande protagonismo dos setores historicamente subalternizados nos EUA (negros, latino americanos, árabes, LGBTs…) são uma demonstração disso. Sua capacidade de convocação foi tão ampla que dali foi impulsionado um dos 8 de Março (Dia Internacional de Luta das Mulheres), mais globalmente mobilizados dos últimos anos. Há indícios da retomada das mobilizações em nível mundial, o que acrescenta uma boa dose de incerteza quanto ao futuro deste novo ciclo histórico. Além disso, o fôlego da extrema direita tem se mostrado limitado, com derrotas em países importantes como a Holanda, para citar o caso mais recente. Ressalte-se o crescimento do desempenho eleitoral da esquerda anticapitalista representado em partidos como o Podemos na Espanha, o Bloco de Esquerda em Portugal, o Syriza na Grécia, por exemplo, que também ganharam espaço frente a  crise dos partidos “socialistas” e sociais-democratas que governavam e ainda governam alguns dos principais países da Europa. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, fenômenos como o do democrata Bernie Sanders e do trabalhista Jeremy Corbyn demonstram que o apelo social-democrata pelo estado de bem-estar social em tempos de crise encontra eco em diversas camadas da população.
  13. Mesmo no interior da própria burguesia parece ter se aberto um conjunto importante de cisões e diferenciações. A crise fragilizou os antigos pactos que permitiram que as taxas dos ganhos econômicos do período anterior mantivessem grande parte das 20 maiores economias do mundo em relativa estabilidade. Quando os ganhos entram em crise, os antigos pactos também entram e se inicia uma guerra de posições entre as frações da própria burguesia. As iniciativas de aproximação do EUA de Trump com a Rússia de Putin são um marco nessa virada da conjuntura tanto do ponto de vista da política externa desses países, quanto pelo que representam de reorientação de política interna nos mesmos. Nos somamos às análises que têm sido elaboradas pela IV Internacional que apontam no sentido de estarmos vivenciando um caos geopolítico em escala global, no qual predomina uma imensa dose de incertezas.
  14. Apesar da dificuldade de trabalharmos com previsibilidades nesse cenário, parece que uma tendência geral deve prevalecer. Na busca por levar adiante uma série de ajustes estruturais no capitalismo tanto em nível global quanto nacional, as frações da burguesia que agora encabeçam o processo tendem a acentuar o grau de polarização social e política. Nesse período que vivemos de aparente aceleração da transição histórica, momento em que os dilemas da humanidade tendem a se tornar cada vez mais concretos, visíveis, latentes. Não estando descartada sequer a guerra total do ponto de vista internacional.
  15. Embora reconheçamos as profundas dificuldades impostas pela conjuntura não podemos ser os porta-vozes do derrotismo, do conformismo e do rebaixamento de horizontes. As lutas renascem por toda a parte e o protagonismo feminino nessas lutas deve servir de lição de que as experiências dolorosas de exploração e opressão podem se transformar em resistência e apontar outros caminhos. Não podemos subestimar a experiência e sabedoria do povo trabalhador, das mulheres, dos povos tradicionais, da juventude, das gentes da favela, da negritude, das e dos LGBTs, da classe social dos não proprietários. Como anunciava Chico Science “um homem roubado nunca se engana” e as vivências de usurpação e ataques (que devem se intensificar nesse período) podem se transformar em mobilização e contra-ofensiva emancipatória. Portanto, apesar do período de dificuldades que se anuncia, não temos tempo a temer (ou a perder), não temos tempo para nos lamuriar. É preciso lutar, é preciso mobilizar, é preciso organizar, é preciso formular. O destino dessa virada de época ainda não está definido, podemos subordiná-lo ao interesse das maiorias sociais.

Brasil: derrotar o golpe e os pelegos

  1. Antes de tudo é necessário afirmar o que se torna a cada dia mais evidente: foi golpe! Não foi um golpe apenas contra o governo de Dilma, foi um golpe contra os interesses populares, contra a esquerda e contra o pouco que há de democrático em nossa “democracia”. A  Constituição está sendo queimada, todas as concessões republicanas e “direitos sociais” que haviam sido conquistados em séculos de lutas dos trabalhadores estão sendo suprimidos. Tal movimento indica na perspectiva histórica a volta de um conteúdo de estado de exceção, com restrições de liberdades e retirada de direitos, visando consolidar uma  forma mais “autocrática” de Estado, promovendo um governo puro sangue da burguesia. A este ciclo histórico que tende a ser amplamente coercitivo, ancorado no domínio das bancadas do boi, da bala e da bíblia, contudo, duas perguntas se fazem necessárias: a) É possível administrar a atual crise unicamente por intermédio de medidas coercitivas? b) Em que cenário político pode  emergir uma nova estratégia de conciliação de classes? Por isso, há um aspecto importante que não podemos deixar de dar destaque, há no processo do golpe muitos aspectos de continuidade, a começar pelo fato de o golpista Michel Temer ter sido o vice escolhido pelo próprio PT para Dilma. A posição da Fiesp, da Firjan, do Globo e da Folha de São Paulo só se tornou pró-impeachment em agosto de 2015. Até ali a ideia era a de sangrar  Dilma, que foi se mostrando disposta a fazer as reformas exigidas pelas classes dominantes (da Previdência, inclusive). Em síntese: o PT, depois de ter refundado uma república para a burguesia, apassivou a classe trabalhadora, escorraçou setores mais radicais de sua base política, cooptou quadros políticos e silenciou momentaneamente a pequena burguesia. Estes setores foram postos de lado por alguns setores conservadores que sequestraram a república como sua propriedade. Em outras palavras, a esquerda anticapitalista precisa estar bem representada e unida nas eleições de 2018, colocando-se como campo antigolpe mas sabendo diferenciar-se da política neodesenvolvimentista, social-liberal e pró-capitalista que foi implementada em torno da construção de um projeto de esquerda alternativo para o Brasil. Que esse processo culmine na escolha de um nome que vá representar os setores anticapitalistas e anti-imperialistas na eleição presidencial de 2018 contra a esquerda desbotada e a direita disfarçada representadas, respectivamente, pelo lulo-petismo e pela pré-candidatura de Ciro Gomes (PDT), ao passo em que combata a vontade de crescimento da extrema-direita, configurada na candidatura de Jair Bolsonaro (PSC). O PSOL é o partido que reúne as melhores condições para liderar um processo como esse junto a outros partidos como o PCB e PSTU, e mesmo divisões advindas do campo democrático popular desde uma perspectiva anticapitalista, além de forças de esquerda que não têm representação institucional própria e setores combativos dos movimentos sociais populares, sindicais e estudantis.
  2. É necessário, no entanto, reconstituir historicamente o processo que culminou no golpe em curso, sob risco de ficarmos desarmados para enfrentá-lo. Desde que chegou ao governo central do Brasil o PT optou de forma pública por um projeto de colaboração de classes. A Carta ao Povo Brasileiro que é na verdade a “carta aos banqueiros”  era, até aquele momento, o documento mais rebaixado do ponto de vista programático da história do petismo. A coalizão com o partido liberal, depois com o PMDB e a generalização do “toma-lá-dá-cá” são a marcas do que se denominava “governabilidade” petista. A indicação de Henrique Meirelles para presidência do Banco Central e a realização da primeira reforma da previdência evidenciaram essa perspectiva ainda durante o primeiro governo Lula. Do ponto de vista de classe não houve qualquer constrangimento na constituição de uma ampla aliança envolvendo, inclusive, setores do sindicalismo cutista e frações da burguesia industrial, além de parte importante do que se convencionou chamar de agronegócio e dos bancos que, nas palavras do próprio Lula, nunca haviam lucrado tanto na história do país. É possível afirmar, sem medo de errar, que o núcleo dirigente petista levou o partido a um processo sem volta de transformismo político, rompendo assim com sua história de vinculação orgânica com a classe trabalhadora e a perspectiva socialista.
  3. Ao mesmo tempo, combinou-se um aprofundamento da matriz primário-exportadora sustentada basicamente em torno do complexo mineral-agropecuário-petrolífero com uma expansão econômica sustentada pela alta do preço das commodities, muito relacionada aos altos índices de crescimento da China no período. Essa combinação criou as margens para algumas políticas fundamentais para a constituição desse pacto de colaboração de classes, que foram: o Bolsa Família, o aumento do valor real do salário mínimo, o Minha Casa Minha Vida, a expansão do crédito, o Luz para Todos, dentre outros. É necessário afirmar que apesar de trazer ganhos imediatos que fizeram profunda diferença na vida de milhares de pessoas, todas essas medidas se deram através da lógica da inclusão pelo consumo o que permitiu estender o mercado e o alcance das relações capitalistas no Brasil. Esse período de expansão econômica permitiu que se criasse um aumento relativo da renda dos mais pobres, ampliando os laços dessas parcelas beneficiadas por essas políticas públicas com o lulismo. O êxito relativo dessas medidas causou uma euforia mais ou menos generalizada que ocultou a fragilidade das bases estruturais dessa aposta, que era justamente o avanço do subdesenvolvimento e da dependência econômica. Bastou despencar os preços das commodities para que o que parecia um sonho virasse pesadelo.
  4. As jornadas de junho são o marco para que o pacto social instituído nos governos do PT começasse a desmoronar, pois tal estratégia agia como mediadora de conflitos entre as classes sociais. As manifestações que começaram em torno de demandas populares contra o aumento do preço das passagens e pelo passe livre, ao iniciar uma abordagem mais política das questões do país se depararam com uma esquerda institucional longe de estar à altura dos anseios emancipatórios latentes nas mobilizações iniciais. Dilma ensaiou um pacote de medidas como um Plebiscito sobre a Constituinte que poderiam ter sido importante na abertura de uma disputa social e política mais ampla, mas tratou-se de um voo de galinha, de um balão de ensaio que não foi levado adiante pois se optou por uma acomodação de interesses no interior do Congresso e nos Ministérios. A partir daí houve uma transição do perfil social e ideológico das mobilizações para um perfil anti-PT e anti-esquerda, alterando a correlação de forças, no qual os denominados “coxinhas” passaram a predominar. Ficou nítido que por trás da espontaneidade, desse setor, em especial de classe média, havia uma articulação da grande burguesia nacional e até internacional, que financiou manifestações contra o governo e mobilizou seus aparelhos privados de hegemonia no esvaziamento de um conteúdo de esquerda nas ruas, impondo uma agenda genérica da luta contra a corrupção que legitimou o setor judiciário para iniciar uma caça às bruxas contra a gestão petista e seus principais aliados. Os setores da base governista entraram em uma queda de braços com a nova direita representada por movimentos como o MBL, pós-jornadas de junho, e acabou perdendo nas ruas, fato esse que pavimentou a estrada que culminou com a aprovação do impeachment da ex-presidenta Dilma, consolidando o golpe institucional parlamentar, jurídico e midiático.
  5. Como principal desdobramento desses acontecimentos, fortaleceu-se a operação Lava-jato, fio condutor jurídico, político e moral do processo de impeachment. Teve até aqui uma ação nitidamente seletiva no que diz respeito ao tratamento dado às suas investigações. Também tem arbitrado dentro de uma perspectiva que impõe grande risco para os direitos individuais consagrados. No entanto, há um elemento que a legitima que são as fartas provas de que diversas figuras chaves da Nova República do PT ao PSDB, passando pelo PMDB e um amplo leque de partidos, mantinham uma relação de subordinação à grandes empresas de engenharia e construção a partir de vultosos pagamentos de propina, muitas vezes “legalizadas” através de doações eleitorais. Vendiam o projeto de desenvolvimento do país para esse setor de infraestrutura, assim surgindo mega-empreendimentos como o de Belo Monte, a Transposição do Rio São Francisco, as obras da Copa etc. Ficaram evidentes a espúrias relações que vieram a desmoralizar amplamente a política profissional e a própria democracia burguesa. Um aspecto da Lava-jato que precisa ser melhor estudado é sua relação com o Departamento de Justiça dos EUA e seu desenvolvimento simultâneo em diversos países da América Latina e da África, haveria interesses econômicos e geopolíticos do governo norte-americano nessa investigação?
  6. Alguns elementos indicam também que não está nítido quem determina o nível de seletividade da Lava-jato. Se a operação fosse controlada pelos tucanos e pelo PMDB não seriam necessários movimentos tão desastrados por parte desses, chegando a indicação do inepto Alexandre de Moraes para o STF. É necessário aprofundar as investigações, pois, certamente, a teia de empresas que sequestraram todas as esferas do Estado brasileiro nas últimas décadas vai muito além das empreiteiras. Não podemos estar entre aqueles que viram as costas para esse grande esquema de corrupção tão marcante para o patrimonialismo brasileiro. A recuperação dos valores obtidos ilegalmente é fundamental e a estatização das empreiteiras envolvidas na Lava-jato é uma medida mínima diante dos prejuízos causados. O aparato físico e tecnológico, além do know-how dessas empresas podem ser colocadas a serviço da universalização do saneamento e da moradia para o conjunto da população brasileira.
  7. Impressiona a forma como o núcleo dirigente construiu uma alternativa de repactuação com diversos setores do golpismo como o PMDB do Rio de Janeiro e do PSDB em São Paulo, além de alianças em nível municipal e estadual com a nata dos partidos golpistas. A lição parece não ter sido aprendida e o núcleo dirigente petista dá as costas ao amplo movimento de luta contra o golpe e os golpistas. As sinalizações são de que golpe é uma “palavra forte demais”, que os movimentos de ocupação não seriam a melhor via para combatê-lo e apostando na negociação com o PMDB para uma repactuação por dentro da institucionalidade. Tendo como horizonte estratégico a campanha de Lula em 2018.
  8. Fica cada vez mais evidente a necessidade de aprofundarmos o debate sobre a revolução democrática. A Nova República rui diante dos nossos olhos, a Constituição de 1988 _ que apesar trazer alguns avanços era marcada já pelo pacto por cima das elites _ está completamente desfigurada após 95 emendas e na expectativa de receber a nonagésima sexta que reduzirá os investimentos públicos em saúde, educação e outras áreas por 20 anos. O sistema eleitoral está falido e executivos e legislativos dominados por um amplo lobby que se revela a cada nova fase das operações policiais, tendo como a mais recente novidade os escândalos envolvendo as maiores empresas de alimentos do Brasil como JBS, Friboi e a BRF, além do poder público. O judiciário vem se tornando cada vez mais um “poder moderador” acima de qualquer controle público e a mídia age desavergonhadamente enquanto partido. Devemos abrir imediatamente os debates sobre que ordem constitucional que queremos e qual a melhor estratégia para viabilizá-la.
  9. A intensidade, velocidade e profundidade dos ataques aos direitos sociais e políticos nos primeiros meses do governo golpista tendem a estimular um processo de mobilizações contra Temer e suas medidas. Os atos do Dia Internacional das Mulheres e do dia 15M mostram que pode estar se constituindo uma Frente Única com capacidade de fazer o governo recuar. Mesmo as centrais sindicais outrora governistas parecem paquidermicamente iniciar uma jornada contra as reformas trabalhistas e da previdência. Entendemos que somente a política de Frente Única pode interromper a ofensiva golpista e recolocar a possibilidade de movimentos de contra ofensivo por parte da classe trabalhadora e do conjunto de lutadoras e lutadores.
  10. Todavia não podemos atuar desarmados ideológica e politicamente nessa Frente. Reconhecemos que o momento é predominantemente defensivo mas que é necessário articular permanentemente as ações defensivas com um horizonte emancipatório mais amplo, precisamos ser consequentes com um projeto anticapitalista e  ecossocialista. Atuar dessa forma é a única maneira de superar a direção pelega e burocratizada do petismo no movimento, fazendo a unidade para a luta mas mantendo a crítica às iniciativas dos governos petistas que também apontaram para a retirada de direitos como solução, a exemplo da Reforma da Previdência de 2003 e do processo de privatizações implementado pelos governos petistas. Mais do que isso, colocando em primeiro lugar as bandeiras históricas da nossa classe como Reforma Agrária e Urbana, Auditoria da Dívida Pública, Redução da Jornada de Trabalho sem redução de salários, etc. Por isso, atuaremos na Frente Povo Sem Medo, por seu potencial mobilizador junto aos setores populares, especialmente o MTST, buscando fazer com que essa ferramenta de mobilização se oriente na busca de um protagonismo popular nas lutas o mais independente possível do campo pelego e burocratizado representado por setores-chave da Frente Brasil Popular. Ao mesmo tempo, participaremos e construiremos a Frente de Esquerda Socialista, mobilizando e discutindo uma tática comum dos setores anticapitalistas para enfrentar os ataques da conjuntura e construção de uma estratégia de superação da direção petista dos movimentos sociais.
  11. Dentro do conjunto de ataques aos direitos sociais destacam-se aqueles que são desferidos contra as trabalhadoras e os trabalhadores. É urgente, portanto, avançarmos na definição que diz respeito à nossa representação social e sindical no mundo do trabalho. A capitulação da CUT ao sindicalismo pelego requer uma resposta na reconstrução do movimento dos trabalhadores em nível nacional. Indicamos à nossa militância sindical que inicie imediatamente o debate acerca da nossa relação com a Conlutas e que apresente para o debate público e também no interior da organização uma resolução ainda no primeiro semestre sobre esse tema.
  12. Por fim, devemos fazer uma séria reflexão a partir de uma leitura nacional das  eleições municipais, que mostraram um crescimento quantitativo do voto nulo, que revela o desgaste das paixões populares na via eleitoral.  Mostrando que parte do eleitorado  deixou de votar _ seja pela crise política e institucional ampliada pela exploração da pauta centrada na corrupção da velha política ou de setores que se  decepcionaram com o PT. Esse é  um desafio para a esquerda socialista, reencantar corações e mentes desiludidas. Parte desse eleitorado é jovem e se identifica como “anarquista” ou “libertário”, sendo que um dos fatores que diferencia movimentos de esquerda deste tipo de outras décadas é que tal setor está sendo disputado também pela direita.

O PSOL e as convergências da esquerda socialista

  1. O PSOL já alcançou mais de uma década de idade, cresceu bastante, mas não conseguiu se constituir para além da ação institucional e em algumas regiões do país não se tornou significativo sequer nessa esfera. Mais do que nunca fica evidente o acerto que foi a construção dessa ferramenta a partir de parlamentares de esquerda que se insurgiram contra a reforma da Previdência apresentada pelo governo Lula em 2003. Essa origem parlamentar foi sendo reforçada por uma agenda fortemente vinculada aos processos eleitorais. Até aqui, ao menos nas eleições nacionais e estaduais, foi possível manter um bom nível de coerência política, especialmente no que diz respeito à manutenção de uma posição de oposição de esquerda aos governos do PT.
  2. Esse saldo razoavelmente positivo não pode nos impedir de enxergar que a pressão pela ampliação das alianças eleitorais e até mesmo para o recebimento de doações financeiras do setor empresarial nas eleições sempre estiveram presentes. A reforma eleitoral de Eduardo Cunha faz parte da arquitetura do referido golpe institucional, ela visou, dentre outros objetivos, inviabilizar o crescimento de uma alternativa à esquerda do petismo. Em especial, visou limitar o crescimento do PSOL com medidas como: a) a não obrigatoriedade do convite ao PSOL para os debates entre candidatos a cargos majoritários; b) a redução drástica do tempo de TV; e c) o risco da perda do fundo partidário caso não obtenha nove cadeiras na Câmara Federal na eleição de 2018. O êxito dos planos de Cunha pode servir de pressão para que setores do PSOL queiram ampliar alianças com os setores do antigo governismo e os ditos “democratas e progressistas”.
  3. Os principais déficits do PSOL dizem respeito ao seu pequeno enraizamento social e a sua baixa densidade programática. Ambos problemas têm relação. Por ter grande foco na luta institucional/eleitoral, a pauta política do partido gira em torno dos temas mais relevantes da conjuntura política do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, e dos diferentes níveis de poder executivo. O programa do PSOL, por conta dessa debilidade, se restringe aos aspectos do que podemos chamar de “políticas públicas” realizadas pelo Estado. Falta uma dimensão de caráter mais social e organizativo, uma linha de atuação nos movimentos sociais e para a transformação por fora do Estado, combinada com a ação institucional do partido. O PSOL e a esquerda socialista e anticapitalista como um todo ainda não conseguiram elaborar um programa que esteja à altura dos desafios da complexa realidade brasileira e, talvez por isso, ainda não consigam se apresentar como uma alternativa real de poder. Isso pode vir a ser esboçado no percurso do processo de preparação para o desafio eleitoral do ano que vem, processo esse que já começou e em relação ao qual estamos atrasados. Alertamos que tão importante quanto o programa que podemos apresentar para o Brasil é a sua metodologia de construção, que deve mobilizar amplos setores da esquerda brasileira. A eleição de 2018 deve servir para transformar, de uma vez por todas, o PSOL e a Frente de Esquerda Socialista em forças capazes de polarizar com os grandes partidos da política brasileira.
  4. A limitação da inserção social do partido pode ser explicada, em grande medida, pelo seu perfil ultracentralizado e pela sua cultura política de tomada das decisões estratégicas através de acordos de cúpula, em geral, entre dirigentes das maiores correntes que dirigem o PSOL. A rasa democracia partidária interna é aprofundada pela completa ausência de uma política nacional de criação e fortalecimento de Núcleos de Base, onde quer que exista militantes do partido. Mesmo as instâncias colegiadas de direção são bastante esvaziadas e reúnem-se pouco, com pouco compartilhamento das informações, favorecendo, mais uma vez a centralização e os acordos entre a “cúpula dirigente” . Do ponto de vista das direções políticas da dinâmica colegiada, na prática, ela é substituída por uma ação forjada na lógica das maiorias-minorias supostamente cristalizadas.
  5. Os militantes do PSOL em todo Brasil vivem uma relativa inércia entre os períodos congressuais do partido. Perde-se assim a possibilidade de contar com a ação política de milhares de ativistas que poderiam ajudar a criar maior enraizamento nos movimentos sociais, comunitários, emancipatórios. É possível mudar isso aumentando o grau de engajamento militante e aproximando outros grupos de esquerda que hoje não vêem o PSOL como alternativa viável para a construção do socialismo no Brasil.
  6. Apesar de seus limites, avaliamos que o saldo político do PSOL é positivo e que valeu a pena a sua construção até aqui e que ele se tornará cada vez mais atrativo para lutadoras e lutadores. A discussão desse processo de entrada no PSOL de novos grupos e sujeitos políticos deve ser feita longe de todo sectarismo, buscando a ampliação e o fortalecimento do partido não apenas do ponto de vista quantitativo como do ponto de vista qualitativo e tentando superar as deficiências que ainda perduram. A vinda de setores à esquerda, como o MAIS e o NOS, além de grupos regionais são uma boa novidade. A expectativa de uma migração significativa de petistas sofreu uma razoável arrefecida com a publicização dos índices eleitorais de Lula para 2018, revelando certo eleitoralismo de alguns segmentos. Ainda assim é possível que setores que realmente queiram apostar em uma estratégia anticapitalista e/ou na construção de uma luta social independente e combativa se descolem do PT. Se o PSOL souber lidar com esse processo com abertura e sem se descaracterizar poderá fortalecer a perspectiva de construção de um partido mais militante e com maior capacidade de inserção social, além de maior representação institucional.
  7. É preciso proteger o partido dos setores que enxergam _ especialmente em nossa legenda, que permanece inabalada diante dos escândalos de corrupção _ uma solução para manutenção de suas ambições eleitorais. O PSOL não pode ser uma tábua de salvação para agentes políticos desse tipo, sob risco de sofrer uma pressão institucional degenerativa. Vale lembrar que esse tipo de pressão teve um papel importante no transformismo petista. Para determinação dessas fronteiras não devemos buscar um debate revanchista de balanço. Mas o PSOL não poderá conviver em seu interior com setores que não reconheçam que a estratégia de conciliação de classes do PT e seus governos deu errado. Não deve existir no interior do PSOL posições que reivindiquem os governos Lula e Dilma como experiências exitosas do ponto de vista dos interesses materiais da classe trabalhadora e de uma política de esquerda. O período dos governos petistas e seu trágico fim representaram uma derrota tremenda para a esquerda, cujos resultados devem continuar repercutindo por um bom tempo. O PSOL nasceu como oposição a essa estratégia e a esses governos e assim deve permanecer.
  8. O processo congressual que se avizinha deve ser o mais democrático possível e deve ser encarado como uma oportunidade e tanto para estimular o mais amplo debate democrático, de forma prévia, a respeito dos temas centrais da conjuntura, como para colocar em movimento o conjunto da militância do PSOL, desde já. Antes que se inicie a corrida para a retirada de delegados _ processos que têm sido tão negativos nas últimas ocasiões _ é necessário constituir espaços que fortaleçam nossa construção programática e nossa democracia interna.
  9. Do ponto de vista da esquerda mais ampla, poderíamos protagonizar a execução de um processo de realização de debates públicos, no qual o PSOL se colocaria como ponto em torno do qual possamos fazer um amplo debate sobre estratégia para o (eco)socialismo e os desafios da conjuntura. Após 12 anos de fundação o partido tem legitimidade na esquerda para ser um pólo aglutinador e convergente, fazendo valer sua “vocação” de “guarda-chuvas” da esquerda anticapitalista, feminista, antirracista, anti-LGBTTfóbica. O PSOL somente cumprirá com seu maior desafio histórico, qual seja, o de colaborar de forma efetiva para a revolução brasileira, se conseguir se constituir em um partido radical e de massas, somando-se a outros partidos e movimentos nessa empreitada.

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