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A Destruição Capitalista do Ambiente e a Alternativa Ecossocialista (Parte 1)

 

O texto abaixo foi aprovado como proposta de resolução sobre ecologia para o 17º Congresso Mundial da IV Internacional, que será realizado entre os dias 24 de fevereiro e 4 de março de 2018, na Bélgica. Em virtude do tamanho do mesmo, o divulgaremos em duas partes. A tradução é do companheiro Alexandre Araújo Costa. Boa leitura!

 

Em memória de Berta Cáceres, ativista indígena, ecologista e feminista de Honduras, assassinada em 3 de março de 2016 pelos senhores das multinacionais e em memória dos mártires nas lutas pela justiça ambiental.

  1. Introdução

1.1. A pressão que a humanidade exerce no Sistema Terra tem crescido cada vez mais rapidamente desde a década de 1950. No início do século 21, atingiu um nível extremamente alarmante e continua a crescer em quase todas as áreas. Esta pressão quantitativa crescente, observável em todos os lugares e na maioria dos campos, leva a uma mudança qualitativa que pode ser abrupta (dentro de algumas décadas) e em grande parte irreversível. O Sistema Terra entraria então num novo regime de equilíbrio dinâmico, caracterizado por condições geofísicas muito diferentes e uma diminuição ainda mais acentuada da sua riqueza biológica. No mínimo, além das consequências para outras criaturas vivas, a transição para esse novo regime põe em perigo a vida de centenas de milhões de pessoas pobres, especialmente mulheres, crianças e idosos. No pior caso, não se pode sequer excluir que isso contribua para o colapso de nossa espécie.

1.2. O perigo aumenta dia a dia, mas a catástrofe pode ser evitada, ou pelo menos limitada e contida. Não é a existência humana em geral a causa determinante da ameaça, mas o modo de produção e reprodução social dessa existência, que também inclui seu modo de distribuição, consumo e valores culturais. O modo em vigor por cerca de dois séculos – o capitalismo – é insustentável porque a competição por lucro, sua força motriz, implica uma tendência cega a um crescimento quantitativo ilimitado. Durante o século 20, os países do “socialismo realmente existente” foram incapazes de oferecer uma alternativa à destruição produtivista do meio ambiente, a que também contribuíram de forma importante. No início do século 21, a humanidade é confrontada com a obrigação sem precedentes de controlar o seu desenvolvimento em todos os campos, a fim de torná-lo compatível com os limites e a boa saúde do ambiente em que se desenvolveu. Nenhum projeto político pode ignorar a conclusão dos estudos científicos sobre as “mudanças globais”. Pelo contrário, todo projeto político deve ser avaliado em primeiro lugar, levando em consideração o risco, as respostas sistêmicas que traz, a conformidade dessas respostas com os requisitos fundamentais da dignidade humana e sua articulação com seu programa nas demais áreas, particularmente na esfera social e econômica.

  1. Um fosso profundo entre a urgência de uma alternativa ecossocialista radical, por um lado, e a correlação de forças e os níveis de consciência, por outro.

2.1. Uma relação completamente diferente da humanidade com o meio ambiente é uma necessidade urgente. Esta nova relação, baseada num modelo de cuidado, tanto para com os seres humanos como para com o meio ambiente, não será simplesmente o resultado de mudanças individuais no comportamento. Em vez disso, precisa de uma mudança estrutural nas relações entre os seres humanos: a erradicação total e global do capitalismo como modo de produção da existência social. Esta erradicação total é de fato condição necessária para uma gestão radical, econômica e prudente nas trocas de matéria entre a humanidade e o resto da natureza. As ciências e tecnologias podem facilitar esta gestão, mas apenas com a condição de que seu desenvolvimento não esteja sujeito aos ditames do lucro capitalista.

2.2. O capitalismo verde e o acordo de Paris não nos permitem livrar-nos da destruição ambiental em geral e dos perigos do negacionismo climático em particular. A alternativa só poderá vir de uma política mundial que satisfaça as reais necessidades humanas. Estas não são determinadas pelo mercado, mas por uma discussão democrática que permita às pessoas tomarem seu destino em suas próprias mãos, liberadas da alienação mercantil. Isso quebrará a lógica impessoal da acumulação produtivista típica do capitalismo.

2.3. As principais demandas desta alternativa são:

1- a socialização do setor de energia: esta é a única maneira de nos libertarmos de uma economia de energia fóssil, parar a energia nuclear, reduzir radicalmente a produção/consumo de energia e realizar o mais rápido possível a transição para um sistema de energia renovável, descentralizado e eficiente, compatível com os imperativos ecológicos e sociais;

2- a socialização do setor de crédito: isto é essencial, dado o entrelaçamento dos setores de energia e financeiro em investimentos de grande porte ​​e a longo prazo e para ter os recursos financeiros necessários para os investimentos na transição;

3- a abolição da propriedade privada sobre os recursos naturais (terra, água, florestas, energia eólica, energia geotérmica, recursos marinhos, etc.) e sobre o conhecimento intelectual;

4- a destruição de todos os estoques de armas, a supressão de produtos inúteis (munições etc.) ou perigosos (produtos petroquímicos, energia nuclear) e a produção de valores de uso decidida democraticamente em substituição a valores de troca;

5 – uma gestão comum e democrática dos recursos a serviço das necessidades humanas reais, com respeito ao bom funcionamento e à capacidade de renovação dos ecossistemas;

6- a abolição de todas as formas de desigualdade e discriminação baseadas em gênero, raça, etnia, religião ou orientação sexual; a emancipação de todos os oprimidos, em particular a emancipação das mulheres e das pessoas não-brancas;

7- a abolição das horas de trabalho impostas para a produção de mercadorias como uma categoria alienante que destrói o tempo de lazer e desencoraja atividades humanas não mercantilizadas;

8 – uma política socioeconômica a longo prazo visando reequilibrar as populações urbanas e rurais e superar a oposição entre a cidade e o campo;

2.4. Há uma diferença profunda entre essa alternativa objetivamente necessária e a correlação social de forças e os níveis de consciência atuais. Esta lacuna só pode ser preenchida por lutas concretas dos explorados e oprimidos na defesa de suas condições de vida e do meio ambiente. Ao conquistar demandas imediatas, camadas maiores se radicalizarão, suas lutas convergirão e serão formuladas demandas de transição incompatíveis com a lógica capitalista. Neste quadro estratégico, algumas demandas fundamentais são:

1 – desinvestir do setor de combustíveis fósseis; interromper os subsídios para o desenvolvimento de projetos baseados em energia fóssil e sua combustão; opor-se a parcerias público-privadas que atualmente dominam o setor de energia em todo o mundo;

2- mobilizar-se contra todos os projetos extrativistas – especialmente novas explorações de petróleo, como o gás de xisto (fracking) e os inúmeros investimentos inúteis a serviço do setor fóssil (aeroportos, rodovias etc.),

3- deter a energia nuclear e encerrar a extração de carvão, areias betuminosas e lignito,

4- apoiar programas educacionais populares sobre a sustentabilidade ecológica; 5- recusar a apropriação capitalista da terra, dos oceanos e dos seus recursos; defender os direitos das mulheres começando com a luta contra todas as tentativas de criminalizar as suas decisões em relação à questão reprodutivas: aborto livre e contracepção sob demanda, cobertos pelo sistema de segurança social e de saúde; desfemininizar e desprivatizar o cuidado das crianças e das pessoas doentes e idosas: estas são responsabilidades comuns;

7 – reconhecer o direito dos povos originários/povos indígenas à autodeterminação; reconhecer o seu conhecimento e inserção sustentável nos ecossistemas;

8 – conferir o estatuto de refugiado às vítimas de catástrofes ecológicas/climáticas; pleno respeito aos direitos democráticos dos refugiados, incluindo a liberdade de circulação e assentamento;

9- garantir um bom sistema de seguridade social com garantias para todos os indivíduos incluindo pensões e aposentadorias adequadas;

10- abolir acordos de livre comércio multilaterais e bilaterais; remover as tecnologias ecológicas dos GATTs (Acordos Gerais de Tarifas e Comércio);

11- respeitar os compromissos do Fundo Verde (US $ 100 bilhões/ano) a serem feitos sob a forma de subsídios e não de empréstimos; gestão pública do Fundo Verde, não pelo Banco Mundial, mas por representantes dos países do Sul, sob controle de comunidades e movimentos sociais;

12-taxar o transporte aéreo e marítimo internacional; a arrecadação deste imposto deve ir diretamente aos países do Sul como compensação (parcial) da dívida ecológica;

13- reconhecer a dívida ecológica aos países do Sul. Abolir (sem compensação, exceto para pequenos credores) as dívidas públicas usadas pelo imperialismo para impor um modelo de desenvolvimento injusto e insustentável;

14 – taxar as transações financeiras e construir uma reforma fiscal redistributiva para que os donos de capital e seus herdeiros paguem pela transição;

15- abolir o sistema de patentes e, em particular, interromper todas as patentes sobre a vida e sobre tecnologias relacionadas à conversão e armazenamento de energia; acabar com o roubo do conhecimento ancestral dos povos indígenas, especificamente pela indústria farmacêutica;

16- reorganizar a pesquisa pública; acabar com o sistema que submete a pesquisa aos interesses da indústria;

17- promover a soberania alimentar e a proteção da biodiversidade via reforma agrária;

18- colocar em prática uma agricultura ecológica, local, sem transgênicos nem agrotóxicos e reconhecida como bem público;

19- abolir a indústria de reprodução de animais; reduzir fortemente a produção/consumo de carne; respeitar o bem-estar animal;

20- banir a publicidade e instituir a reciclagem, reuso e redução: acabar com o consumismo e com o modelo desperdiçador e demandante de energia imposto pelo capital,

21- estabelecer energia e água gratuitas para necessidades básicas e, acima desse limiar, impor tarifas fortemente vinculadas ao uso, para lutar contra o desperdício ao mesmo tempo em que se assegura o acesso básico; desenvolver uma estratégia para ampliar a distribuição de bens (produtos alimentares básicos) e serviços (transporte público, educação, cuidados de saúde, etc.) gratuitos;

22- garantir aos trabalhadores cujas empresas devem ser fechadas no âmbito da transição o direito a se inserir num ramo de produção alternativo, necessária para construir uma infraestrutura sustentável ou, se esses planos se revelarem irrealistas, os/as trabalhadores/as devem ter seus direitos mantidos até retreinamento, novo posto de trabalho ou aposentadoria;

23- desenvolver empreendimentos públicos voltados para a criação de empregos através da implementação da transição ecológica, livre do lucro, sob controle de trabalhadores/as e cidadãos/ãs (em particular nos campos de geração de eletricidade, gestão de recursos hídricos, construção-isolamento térmico-renovação de edifícios, mobilidade humana através do fim da sociedade do automóvel, reciclagem de lixo e recuperação de ecossistemas);

24- garantir os direitos dos trabalhadores de se organizarem e exercerem controle em seus locais de trabalho, especialmente na saúde ocupacional, sustentabilidade de produtos, eficiência da produção, etc.; proteção para os denunciantes;

25- reduzir a jornada de trabalho sem redução de salario; implementar uma contratação proporcional (especialmente de jovens, mulheres e minorias): junto com o desenvolvimento do setor público é a melhor maneira de reconciliar a redução da produção de bens e de consumo de energia com o pleno emprego e transição democrática;

26- reformar as áreas urbanas visando quebrar a especulação imobiliária, “desartificializando” a cidade (através do incentivo à arborização e à agricultura urbana e preservação/recuperação de ecossistemas locais encravados no ambiente urbano) e libertando-a dos carros em favor do transporte público e mobilidade ativa (desenvolvendo áreas exclusivamente para pedestres e ciclistas).

2.5. Este programa não é fechado; é e continuará sendo enriquecido nas lutas concretas, numa perspectiva ecossocialista, sendo esses avanços guiados pelos princípios de uma transição justa: justiça socioambiental, responsabilidades comuns porém diferenciadas, luta contra a desigualdade e por melhoria das condições de vida, fim do “colonialismo verde” e racismo ambiental, prioridade para soluções coletivas, internacionalismo, princípio da precaução. Acima de tudo, os/as explorados/as e oprimidos/as devem avançar seu empoderamento pela democracia, descentralização, controle social e apropriação/reapropriação coletiva dos bens comuns, o que é comunal sendo definido pelo processo social de construção democrática, não pela natureza de certas coisas como “comum”, enquanto outras estejam condenadas eternamente à apropriação privada.

As demandas acima não constituem, portanto, uma solução fechada: elas indicam um rumo geral para uma perspectiva anticapitalista, internacionalista, ecossocialista e ecofeminista que mudará todas as esferas da atividade humana (produção, reprodução, distribuição, consumo) e será acompanhada de uma profunda mudança nos valores culturais. Tais medidas são aplicáveis em separado, mas o encerramento da crise só é possível através de sua aplicação coordenada e planejada. Elas formam um todo coerente, incompatível com o “funcionamento normal” do sistema capitalista. Não há outra forma de enfrentar a urgência imposta pela situação atual.

 

  1. Salário, trabalho, alienação e Ecossocialismo

3.1. Só os/as explorados/as e oprimidos/as podem levar adiante a luta ambiental até o fim porque a abolição do sistema capitalista corresponde a seus interesses de classe. No entanto, o capital incorpora a este sistema os/as trabalhadores/as ao comprar seu/sua força de trabalho, tendo a mercantilização e destruição do ambiente como resultado. Sob circunstâncias “normais” do modo de produção capitalista, a existência diária dos/as proletários/as depende do funcionamento do sistema que os mutila diretamente e, ao mutilar o ambiente, também indiretamente. Essa contradição torna ao mesmo tempo difícil mas também de importância decisiva a mobilização do movimento de trabalhadores/as para a luta ecológica. No presente momento, dada a reestruturação da economia com desemprego em massa, o declínio na consciência de classe e a deterioração do balanço de forcas entre trabalho e capital, tal dificuldade cresceu.

3.2. A liderança majoritária do movimento sindical é favorável à colaboração de classes em torno do projeto conhecido como “capitalismo verde”. Eles têm a ilusão de que a “transição justa”, se for bem negociada, reduzirá o desemprego massivamente e favorecerá o crescimento graças à produção “verde”. Defrontados com essa tendência sindical dominante, certos setores se inclinam ao protecionismo ou até mesmo ao negacionismo climático. De fato, em certos casos, a defesa do clima é usada como pretexto para ataques capitalistas, ou os sindicalistas têm a ilusão de que negar a realidade os ajudará a evitar a perda de postos de emprego nos setores de combustíveis fósseis. Fomentar o debate das alternativas ecossocialistas e ajudar a construir um setor de esquerda que rompa com a lógica capitalista e a colaboração de classes é, portanto, uma tarefa de importância estratégica prioritária.

3.3. Setores à esquerda estão participando de lutas ambientais, por exemplo, “Sindicatos por Democracia Energética”, “Rede do Trabalho por Sustentabilidade” ou “Campanha por Empregos Climáticos”. Tais iniciativas envolvem sindicatos e seus afiliados na superação do medo da perda de emprego em massa. Todas essas importantes iniciativas sindicais atribuem a responsabilidade da saída da economia fóssil às companhias poluidoras e aos governos que as protegem e subsidiam. Assim, apresentam demandas anticapitalistas que podem ser amplificadas e coordenadas quando os trabalhadores são confrontados com a crise ecológica. Por exemplo, os “Sindicatos por Democracia Energética” defendem a socialização da energia. É claro que forças pró-capitalistas tentarão limitar a radicalização dessas campanhas, insistindo que elas permaneçam circunscritas ao “respeito pela competitividade das companhias” (ITUC, Congresso de Vancouver, resolução sobre uma “transição justa”). Mais ainda, campanhas por empregos climáticos são às vezes baseadas em projeções muito otimistas acerca do crescimento dos empregos graças à transição. A sustentabilidade cria a necessidade de redução da produção e isto nem sempre é levado em conta. O fechamento de indústrias nocivas – da produção de armas às termelétricas a carvão – e a reconversão da produção de carros para produção e manutenção de um sistema de transporte público de massas são medidas prioritárias da transição. E de fato a transição fará crescer os empregos em outros setores. Por exemplo, o desmantelamento do agronegócio em favor da agricultura ecológica e o desenvolvimento do setor público ou comunitário sob controle democrático oferecerão possibilidades de reconversão.

Precisamos também levar em conta que as atividades de reorganização conforme as necessidades sociais e a redução das desigualdades constituem objetivos que não estão limitados a uma região específica. Elas constituem objetivos globais implicando em novos empregos voltados ao reparo dos danos infligidos aos países do Sul. No entanto, uma redução global da produção material de bens é necessária. O movimento dos trabalhadores deve responder a isso, demandando uma redução na jornada de trabalho sem redução de salario. Uma redução radical das horas de trabalho é uma demanda antiprodutivista por excelência. Constitui a melhor maneira de “gerir de uma maneira racional as trocas de matéria com a natureza e ao mesmo tempo respeitar a dignidade humana”, reconciliando o pleno emprego com a supressão da produção supérflua e perdulária e da obsolescência programada.

3.4. A deterioração do balanço de forças entre capital e trabalho resultou numa deterioração das condições de trabalho. A saúde dos/as trabalhadores/as mais precarizados/as está especialmente ameaçada. Daí, a luta contra o aumento das doenças ocupacionais constitui um mote para aumentar a percepção dos/as trabalhadores/as do fato de que o capital destrói tanto a Terra quanto a eles/as mesmos/as. Tal destruição inclui o aumento de riscos psico-sociais, resultantes não apenas das formas de organização do trabalho e controle sobre os/as trabalhadores/as, mas também do dano ambiental que muitos trabalhadores/as se veem obrigados/as a produzir sob os ditames do capital. A defesa da saúde dos/as trabalhadores/as é também uma abertura para a geralmente difícil convergência de demandas dos/as trabalhadores de empresas poluidoras, das populações do entorno – que também sofrem com a poluição – e dos movimentos pelo ambiente.

  1. A luta das mulheres e o Ecossocialismo

4.1. Povos indígenas, camponeses/as e juventudes estão na linha de frente das lutas ambientais e as mulheres têm cumprido um papel de liderança nesses três segmentos. Esta situação é produto da opressão específica, não do sexo biológico. O patriarcado impõe às mulheres funções sociais diretamente ligadas ao “cuidado” e as posiciona na linha de frente dos desafios ambientais. Dado que elas produzem 80% dos alimentos nos países do Sul, as mulheres são diretamente confrontadas com os estragos da mudança climática e do agronegócio. Ao assumirem a maior parcela do cuidado com as crianças e das tarefas domésticas, as mulheres são diretamente confrontadas com os efeitos da destruição ambiental e contaminação sobre a saúde e educação de suas comunidades.

4.2. No plano ideológico, os movimentos de mulheres lembram como os corpos das mulheres têm sido usados em nome da ciência (campanhas de esterilização forçada etc.). Essa visão instrumentalista tem sido outra fonte de dominação e manipulação.

4.3. As lutas das mulheres também têm um contributo especial, valioso e insubstituível para o desenvolvimento de uma consciência anticapitalista global que favorece a integração das lutas. De acordo com a ONU, a gama completa de métodos modernos de planejamento familiar ainda permanece indisponível para pelo menos 350 milhões de casais em todo o mundo. Serviços reprodutivos básicos são negados a mais de 220 milhões de mulheres – o que pode ser (e muitas vezes é) a diferença entre a vida e a morte. 74.000 mulheres morrem todos os anos como resultado de abortos clandestinos fracassados ​- um número desproporcional destes, no Sul Global. Todos os anos, cerca de 288.000 mulheres morrem por causas evitáveis ​​relacionadas à gravidez e ao parto – e 99% delas ocorrem em países em desenvolvimento. Ao lutar contra a apropriação patriarcal de seus corpos e contra a exploração de seu trabalho doméstico gratuito, as mulheres percebem que o capitalismo depende não apenas da apropriação da natureza e da exploração da força de trabalho através do trabalho assalariado, mas também da invisibilização patriarcal do trabalho de cuidado e reprodução da força de trabalho. Adicionado a estes três pilares do capitalismo, aparece um quarto: a exploração baseada na raça, todos tendo um denominador comum ,que é a apropriação de recursos naturais, na qual a força de trabalho humana faz parte. A luta das mulheres (i) pelo direito de controlar seus corpos, sexualidade e capacidade reprodutiva, livre de violência, (ii) contra a discriminação sexista e racista no mercado de trabalho assalariado e na produção em geral, e (iii) para reconhecimento social e reorganização do trabalho doméstico são, portanto, parte integrante da luta ecossocialista. As lutas das mulheres se aprofundam e aumentam o horizonte da libertação.

  1. A questão agrária e o ecossocialismo

5.1. Em todo o mundo, os/as agricultores/as, os/as camponeses/as sem terra e os/as trabalhadores/as agrícolas são o setor social mais envolvido no mundo na luta pelo meio ambiente em geral e o clima em particular. Este papel de vanguarda é atribuível à brutal agressão do capital, que quer eliminar os camponeses independentes e substituir sua condição pela de trabalhadores agrícolas, trabalhadores subcontratados e desempregados (para exercer pressão sobre os salários). O sistema industrial agrícola produz bens baratos a baixo custo para o mercado, em vez de alimentos de qualidade para as populações locais. Organizações camponesas, como a Via Campesina, realizam trabalhos organizacionais e de conscientização, inclusive ajudando as pessoas sem terra a conquistar terras abandonadas.

5.2. Ao contrário dos trabalhadores assalariados, os pequenos agricultores não são incorporados no capital. Embora a produção para o mercado tenda a impor objetivos e métodos produtivos sobre eles, eles também mantêm a mentalidade do artesão ansioso por fazer um “trabalho esmerado”. Apesar do poderoso inimigo capitalista, eles se mobilizam para reter ou reconquistar a propriedade de seus meios de produção. Mas a correlação de forças muito desigual diante do agronegócio e da distribuição em larga escala os obriga a buscar alianças com outros movimentos sociais, em particular com os assalariados e o movimento ambiental. Os trabalhadores agrícolas, especialmente os trabalhadores sazonais indocumentados que são superexplorados, têm poucas perspectivas de deixar as margens ultraprecárias de assalariados. Apesar das intimidações dos empregadores e mesmo da repressão, alguns conseguiram formar sindicatos e aumentar seus salários e condições de trabalho. Sua luta é objetivamente anticapitalista.

5.3. A importância da questão agrária não deve ser julgada apenas pela proporção de agricultores na força de trabalho, mas com base em cinco fatos objetivos:

5.3.1 Os modos industriais da produção agrícola e da pesca estão no centro de questões decisivas de saúde humana (obesidade, doenças cardíacas, alergias, etc.) e da proteção do meio ambiente, que revelam a força destrutiva do capital. As mudanças no comportamento dos consumidores não levarão à transição ecológica, mas as escolhas feitas no consumo de alimentos podem apoiar a reorientação da agricultura e ter um impacto ecológico significativo. A exigência de “soberania alimentar” torna mais difícil para as empresas multinacionais usar a comida como uma arma contra as lutas populares. Permite unificar consumidores e produtores em torno de práticas geradoras de consciência anticapitalista.

5.3.2. As mulheres desempenham um papel importante na produção agrícola, representando 43% da força de trabalho agrícola nos países chamados em “desenvolvimento”. A discriminação patriarcal é refletida no menor tamanho de suas fazendas e rebanhos, no menor nível de mecanização, numa carga de trabalho mais pesada para um menor rendimento (devido ao peso de tarefas improdutivas – como a obtenção de água e lenha) e no menor acesso ao treinamento e crédito (mas uma parte mais importante do que os homens no microcrédito). A emancipação das mulheres agricultoras como mulheres é uma das condições decisivas para enfrentar o desafio da soberania alimentar e da agricultura ecológica. É, portanto, uma questão ecossocialista em si mesma.

5.3.3. O setor agropecuário como um todo é responsável por mais de 40% das emissões de gases de efeito estufa. O agronegócio também é um agente chave para a intoxicação química da biosfera, enquanto a pesca industrial e a poluição da água pelo agronegócio são determinantes importantes da perda de biodiversidade em ambientes aquáticos. Ao mesmo tempo, o aquecimento global ameaça a produtividade da terra e a acidificação causada pelo aumento dos níveis de CO2 ameaçam os ecossistemas aquáticos.

5.3.4. A perda de biodiversidade não será interrompida principalmente pela criação de reservas naturais, mas pelo desenvolvimento de uma agricultura ecológica. Além disso, reduzir as emissões de gases de efeito estufa para zero não é mais suficiente para reduzir a mudança climática. Nas próximas décadas, o carbono deve ser removido da atmosfera. Dada a lógica da rentabilidade, o capital só pode reagir com tecnologias perigosas, como geoengenharia e uma apropriação geral de “serviços ecossistêmicos”. A agricultura camponesa e a silvicultura racional são o único meio de conseguir essa remoção de forma eficiente, segura, respeitando a justiça social. Assim, a proteção da biodiversidade e do clima reforça a necessidade da alternativa ecossocialista. O papel decisivo da agricultura agroecológica é materialmente fundamentado nesta alternativa geral.

5.3.5. A transição para a agricultura ecológica (e para a pesca e silvicultura) é uma condição importante para a construção de uma sociedade ecossocialista. Este aspecto é da mesma importância que a democracia dos produtores e o uso de energia 100% renovável. No entanto, a agroecologia é mais intensiva em mão-de-obra do que a agricultura industrial. A transição para a silvicultura sustentável e a restauração / proteção dos ecossistemas implicam em um aumento da participação da população investida nessas atividades. Para responder a este desafio, é necessária uma política de longo prazo para atualizar os negócios agrícolas, treinar trabalhadores, equipar as áreas rurais com infraestrutura e serviços e construir hortas urbanas.

Leia a Parte 2 aqui.

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